Maternidade: semeando memórias

Esses dias o Ícaro escreveu um baita texto (*), que me fez mergulhar num mar de memórias.

As viagens para a praia nas férias, a primalhada toda, quatro ou cinco crianças apertadas no banco traseiro do carro (na época em que ainda não estava em voga a paranóia das cadeirinhas), areia pelo chão, restos de comida, risadas, brigas. Sempre tinha café com leite e sanduichinhos para comer durante a viagem. Depois, os almoços praianos — peixe, camarão, caranguejo –, cujo gosto se mistura, na minha memória, ao da água de coco fresca e ao cheiro do Sundown…

Era uma delícia. São algumas das minhas melhores lembranças.

E na época tudo parecia fácil, gratuito, natural… Mas não era. Devo os melhores dias da minha infância ao trabalho de outras pessoas.

Os sanduíches não brotavam espontaneamente da sacola de praia. Os almoços não se cozinhavam sozinhos. Hoje, rememorando aquelas cenas com olhos adultos, encontro sempre, no plano de fundo da algazarra das crianças, as silhuetas das minhas tias e mãe, suadas, descabeladas, construindo com as próprias mãos a nossa infância. O que para nós era divertimento e liberdade, para elas era preocupação, responsabilidades, cuidado.

Há uma fala do Pe. Paulo Ricardo na qual penso constantemente. Em um de seus programas, ele comentou o pedido que um seguidor lhe fez: “Padre, fale algo para as pessoas que não querem ter filhos! Diga a elas que essa é a maior alegria da vida!”. Já não recordo as palavras exatas que o Padre Paulo dirigiu ao rapaz, embora carregue seu sentido comigo o tempo inteiro. Ele disse: “Meu amigo, as pessoas devem ter filhos, sim, mas não porque seja algo prazeroso. Não é esse o motivo correto. As pessoas devem ter filhos simplesmente porque um dia alguém fez isso por elas.”

O trabalho é descomunal. Mesmo quando eles dormem, continuam sendo o centro das nossas preocupações. Quando adoecem, nosso mundo se desorganiza por completo, e não apenas do ponto de vista emocional, mas porque é preciso acordar 20 vezes durante a noite para lavar e aspirar o nariz do bebê, medir-lhe a febre e medicá-lo. Você não dorme, você fica lavada de vômito. E, quando o sol clareia lá fora, o dia quer você de pé.

Acho mesmo que virar a noite na cabeceira do filho doente é a experiência mais desarmante, mais moralmente instrutiva que pode haver. É a hora em que você joga as demandas do seu umbigo na lata do lixo. E jogar as demandas do próprio umbigo na lata do lixo é precisamente a definição de virar gente, isto é, amadurecer. Ter filhos não é o único meio para este fim, mas é sem dúvida um dos mais eficazes.

Eu fui uma criança muito doente. Minha mãe, sem marido e trabalhando de sol a sol, cuidou de mim com um amor incalculável. Os anos da minha infância segura e feliz foram, para ela, um período de luta e muito, muito trabalho.

Essa fase que vai dos 30 aos 60 anos, mais ou menos, é provavelmente a mais difícil da vida. É o momento de cuidar dos pequenos e também dos mais velhos, de quem recebemos o bastão da corrida enlouquecida pela sobrevivência no mundo humano. É estar na vanguarda da batalha; é a fase da vida cujo tema inescapável é a doação.

Servir. Fazer o mundo girar.

Precisei ser uma mãe casada para ter alguma dimensão do quanto foi difícil a vida da minha mãe solteira. Como ela deve ter sentido medo sob o peso enorme de seu fardo. E com que coragem ela seguiu adiante para me dar a oportunidade de existir e já ter gerado outras duas vidas, que são, tanto quanto eu, produtos de seu suor e suas lágrimas.

Depois dos filhos, muito do que era simples se torna complicado. Sair de casa é sempre uma odisséia. Viajar, nem se fala. Das tralhas intermináveis para empacotar à necessidade de correr atrás deles o tempo todo, o trabalho é, repito, descomunal. E é nessas horas que penso no Pe. Paulo: alguém fez isso por mim.

Meus filhos estão em plena fase de descobrimento do mundo; seu único dever, por ora, é viver e aprender como se vive — e o meu dever é servi-los. Estar na vanguarda da batalha é ir abrindo caminho para aqueles que vêm depois de nós, a quem devemos proteger e instruir, e nesse sentido é também estar no plano de fundo e ceder-lhes o protagonismo.

Alguém fez isso por mim. Sempre com um sorriso no rosto.

São dias agitados e difíceis, construídos com migalhas de esforços anônimos, que não recebem em retorno glitter nem confete, mas apenas sorrisos, carinhos e a promessa de permanência no tempo, nas próximas gerações.

Fazer o mundo girar: essa é a única revolução em que eu acredito.

(*) Texto do Ícaro: https://www.facebook.com/icaro.decarvalho.7/posts/1576418225782226?pnref=story

(**) Quem não der a mínima para a minha opinião sobre esse assunto pode se contentar com a de Shakespeare: http://www.shakespeare-online.com/sonnets/1.html