Crônicas

O feijão e o plástico

Esses dias, briguei com meu marido (e ele comigo). Tivemos dessas discussões repletas de silêncios e meias palavras, de que, no entanto, saem ambas as partes cheias de mágoas profundas.

Fomos dormir brigados e, no dia seguinte, como não podia deixar de ser, mantive meu silêncio de túmulo. Calar é meu movimento involuntário nessas ocasiões; é mais fácil do que lidar com o problema e permite, à mulher injustiçada, saborear mais intensamente a raiva e a autocomiseração.

Fiz como todas: brigando com ele mentalmente, engolfando-o entre os tentáculos de uma argumentação avassaladora, fui colocar roupa na máquina.

A cada meia, um xeque-mate; a cada camisa social, um mata-leão retirado diretamente dos manuais de retórica feminina.

O clímax da anedota veio quando, checando os bolsos de uma de suas calças, senti dois objetos pequenos – em verdade, minúsculos. Segure a respiração, leitor: nem previsíveis moedas, nem isqueiros proibidos, eram apenas um bago de feijão cru e um pedacinho de plástico partido.

Não levei, para compreender, nenhum segundo a mais do que para ver. Não eram objetos aleatórios, eram, sim, fragmentos do nosso cotidiano, carregados de significado.

Pude vê-lo ali, dando conta das três crianças, enquanto eu lidava com o mundo explodindo dentro da tela do meu computador; pude vê-lo distraindo os mais velhos com uma das mãos, enquanto a outra catava do chão as miudezas que colocam em risco a vida da bebê.

O feijão e o plástico eram aquele meu marido explosivo e afogueado protegendo a vida da nossa bebê.

Fui, de súbito, desarmada por aquele pescotapa inteiramente imprevisto. À noite, durante o jantar, já estava mais mansa – o que consegui a custo disfarçar.

E no dia seguinte permiti que ele me pedisse desculpas.

Ele

“O que mais te encanta nela?”, perguntaram. “O cuidado que ela tem com os nossos filhos”, foi a resposta, contrariando as minhas mais automáticas expectativas.

Engoli seco, redobrada a consciência da minha responsabilidade. E me pus a pensar no peso dessa pequena palavra: cuidado…

Me veio ao coração uma memória do nosso primeiro mês de namoro: ele se ofereceu para passar as noites no hospital com o avô doente. Ninguém lhe pedira, e na fila de convocados estava longe de ser o primeiro, entre tantos filhos e tantos outros netos. O próprio avô já estava inconsciente havia meses.

Ele saía do trabalho e ia dormir numa cadeira ao lado do leito hospitalar. Foi dali que, numa manhã, fez-se presente no momento em que o avô partiu. Cumpriu sua missão sem alarde, sereno.

Eu, que acabara de conhecê-lo, fiz memória daquele fato, que depois se desdobraria em tantos outros ao longo da nossa vida conjugal. Ali estava um homem disposto a cuidar e a sacrificar-se. Filha de mãe solteira, eu desconhecia o que fosse aquilo.

Jamais me faltaram pretendentes, embora todos buscassem antes a carcaça literária que, não tem jeito, me coube arrastar por essa vida. Não estavam dispostos – era óbvio – a descobrir a lesma fria e pegajosa sob a couraça dos textos, das ideias e dos livros. E não tardariam a queimá-la com o sal do desprezo…

Já ele, desde o início, me obrigou à apresentação mais desarmada. Sobreviveu, impávido, às minhas lágrimas e cenas; sempre demonstrou o mais amoroso orgulho dos meus poemas e foi, com simplicidade, jamais com afetação, meu comparsa nas ideias.

Eu cuido dos filhos dele como quem, para viver, respira. Ele me ensina a cada dia que a entrega por amor é a maior das alegrias.

Para o meu clã

— Num romance de moldes tolstoianos, vocês são o casal «fugere urbem», que corta todos os vínculos com o sistema social para cultivar a liberdade do espírito nas montanhas, enquanto nós ficamos aqui, atados à selva de pedra, lutando contra dragões que no máximo tomam a forma de chefes ou de parentes.

Mais de uma vez falei assim à minha comadre (tenho outras, mas ela é a primeira em ordem cronológica). A vida imita a arte, dizemos, embora seja apenas um limitadíssimo chiste.

Jamais teremos a visão completa do intrincado sistema de protagonismos com que Deus compõe o Grande Enredo da vida humana. E é decerto mais feliz e mais serena a trajetória daquele herói que não precisa desgastar-se pesando seu próprio papel em referência aos de seus pares.

(Minha memória animal, nesse momento, traz à tona as mônadas de Leibniz; por sorte, livra-me do risco de tentar compor um pensamento a lembrança mais substantiva das conversas universitárias com minha comadre.)

Era uma vez um erudito — o último de sua espécie, aqui nas terras de Banânia. Nadou a braçadas na poesia de todos os tempos, respondeu aos grandes, foi chorar pitangas à matemática. Enquanto isso, o rapaz magro, de semblante insuportavelmente triste, enxergava com os olhos da moça cega. Tirou o país do analfabetismo: sua fala pausada perturbava o sono de muitos, que ao fim e ao cabo acordaram. Por sua vez, o filho de hippies, que empreendeu desde o próprio quarto adolescente e tornou-se magnata da tecnologia, protagonizou enredo sobre procurar o amor (e achá-lo). Até que, numa nota mais mística, conferindo à obra um acabamento em tom de mistério, surge a moça a quem Deus deu todos os dons: inteligência, virtude, beleza. Espécie de sacerdotisa?

O moço loiro se casou comigo, que talvez nem tenha entrado na história. O poeta segue sempre à margem, escondendo seus cancros sob piruetas e notas de cítara. Não deixa de ser uma posição confortável.

Meus amigos vieram de muito longe: não bastam anos para medir a distância que percorremos. Juntos, apartados; necessariamente solitários. Vou terminar o texto, antes que não resista e use para metáfora as mônadas de Leibniz.

Dia dos pais

Minha vida não precisava ter sido. Por algum tempo, e em incontáveis momentos pontuais, quem olhasse de fora talvez pensasse: não precisava.

Enquanto era só, eu lutava por manter a cabeça para fora do meu mar de defeitos. Hoje, embora continuem sendo muitos, são já os defeitos de quem nada rumo à praia.

Amar um homem que me deu filhos, amar estes filhos até a loucura, varrer o chão que eles pisam, cozinhar o doce que perfuma a casa todas as tardes — embora a minha vida não precisasse, realmente, ter sido.

Só foi por Graça, como todas.

Sobrevivi à custa de muito Anjo da Guarda.

E respondi a quem duvidava da necessidade da minha existência gerando esses outros que são carne da minha carne.

A eles, a mesa posta, a oração em família, o pai dirigindo o carro, o Amor com letra maiúscula, o saudável exemplo dos sexos complementares.

Por eles, fazemos festa em todas as datas comemorativas. Para que saibam que, como um relógio encantado, a vida respeita a uma constância que não permite retornos; que todas as coisas têm nome e as marcas que deixamos secam mares e cavam abismos.

E sobretudo para que se reconheçam, desde o primeiro instante, necessários: perfeitamente integrados à ordem e ao propósito da nossa vida em família — e do mundo que nos circunda.

Maternidade: semeando memórias

Esses dias o Ícaro escreveu um baita texto (*), que me fez mergulhar num mar de memórias.

As viagens para a praia nas férias, a primalhada toda, quatro ou cinco crianças apertadas no banco traseiro do carro (na época em que ainda não estava em voga a paranóia das cadeirinhas), areia pelo chão, restos de comida, risadas, brigas. Sempre tinha café com leite e sanduichinhos para comer durante a viagem. Depois, os almoços praianos — peixe, camarão, caranguejo –, cujo gosto se mistura, na minha memória, ao da água de coco fresca e ao cheiro do Sundown…

Era uma delícia. São algumas das minhas melhores lembranças.

E na época tudo parecia fácil, gratuito, natural… Mas não era. Devo os melhores dias da minha infância ao trabalho de outras pessoas.

Os sanduíches não brotavam espontaneamente da sacola de praia. Os almoços não se cozinhavam sozinhos. Hoje, rememorando aquelas cenas com olhos adultos, encontro sempre, no plano de fundo da algazarra das crianças, as silhuetas das minhas tias e mãe, suadas, descabeladas, construindo com as próprias mãos a nossa infância. O que para nós era divertimento e liberdade, para elas era preocupação, responsabilidades, cuidado.

Há uma fala do Pe. Paulo Ricardo na qual penso constantemente. Em um de seus programas, ele comentou o pedido que um seguidor lhe fez: “Padre, fale algo para as pessoas que não querem ter filhos! Diga a elas que essa é a maior alegria da vida!”. Já não recordo as palavras exatas que o Padre Paulo dirigiu ao rapaz, embora carregue seu sentido comigo o tempo inteiro. Ele disse: “Meu amigo, as pessoas devem ter filhos, sim, mas não porque seja algo prazeroso. Não é esse o motivo correto. As pessoas devem ter filhos simplesmente porque um dia alguém fez isso por elas.”

O trabalho é descomunal. Mesmo quando eles dormem, continuam sendo o centro das nossas preocupações. Quando adoecem, nosso mundo se desorganiza por completo, e não apenas do ponto de vista emocional, mas porque é preciso acordar 20 vezes durante a noite para lavar e aspirar o nariz do bebê, medir-lhe a febre e medicá-lo. Você não dorme, você fica lavada de vômito. E, quando o sol clareia lá fora, o dia quer você de pé.

Acho mesmo que virar a noite na cabeceira do filho doente é a experiência mais desarmante, mais moralmente instrutiva que pode haver. É a hora em que você joga as demandas do seu umbigo na lata do lixo. E jogar as demandas do próprio umbigo na lata do lixo é precisamente a definição de virar gente, isto é, amadurecer. Ter filhos não é o único meio para este fim, mas é sem dúvida um dos mais eficazes.

Eu fui uma criança muito doente. Minha mãe, sem marido e trabalhando de sol a sol, cuidou de mim com um amor incalculável. Os anos da minha infância segura e feliz foram, para ela, um período de luta e muito, muito trabalho.

Essa fase que vai dos 30 aos 60 anos, mais ou menos, é provavelmente a mais difícil da vida. É o momento de cuidar dos pequenos e também dos mais velhos, de quem recebemos o bastão da corrida enlouquecida pela sobrevivência no mundo humano. É estar na vanguarda da batalha; é a fase da vida cujo tema inescapável é a doação.

Servir. Fazer o mundo girar.

Precisei ser uma mãe casada para ter alguma dimensão do quanto foi difícil a vida da minha mãe solteira. Como ela deve ter sentido medo sob o peso enorme de seu fardo. E com que coragem ela seguiu adiante para me dar a oportunidade de existir e já ter gerado outras duas vidas, que são, tanto quanto eu, produtos de seu suor e suas lágrimas.

Depois dos filhos, muito do que era simples se torna complicado. Sair de casa é sempre uma odisséia. Viajar, nem se fala. Das tralhas intermináveis para empacotar à necessidade de correr atrás deles o tempo todo, o trabalho é, repito, descomunal. E é nessas horas que penso no Pe. Paulo: alguém fez isso por mim.

Meus filhos estão em plena fase de descobrimento do mundo; seu único dever, por ora, é viver e aprender como se vive — e o meu dever é servi-los. Estar na vanguarda da batalha é ir abrindo caminho para aqueles que vêm depois de nós, a quem devemos proteger e instruir, e nesse sentido é também estar no plano de fundo e ceder-lhes o protagonismo.

Alguém fez isso por mim. Sempre com um sorriso no rosto.

São dias agitados e difíceis, construídos com migalhas de esforços anônimos, que não recebem em retorno glitter nem confete, mas apenas sorrisos, carinhos e a promessa de permanência no tempo, nas próximas gerações.

Fazer o mundo girar: essa é a única revolução em que eu acredito.

(*) Texto do Ícaro: https://www.facebook.com/icaro.decarvalho.7/posts/1576418225782226?pnref=story

(**) Quem não der a mínima para a minha opinião sobre esse assunto pode se contentar com a de Shakespeare: http://www.shakespeare-online.com/sonnets/1.html

Advento, 2017

“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou…”

“O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.”

Alberto Caeiro, “O Guardador de Rebanhos”, poemas VI e XXX, respectivamente.

 

*

 

Estive relendo Alberto Caeiro, um dos poetas da minha adolescência; e dessa vez com mais interesse do que antes.

Em menina, uns quinze anos atrás, ele não era das minhas leituras mais intensas; nunca me demorei nos seus poemas, que por motivos então obscuros me pareciam “sem sal”. Meu favorito, no universo pessoano, sempre foi o ortônimo.

Hoje Caeiro me chama particularmente a atenção, e o leio com um misto de tédio e angústia, por reconhecer que ainda há muito do que ele diz sedimentado no que eu sou. E ao mesmo tempo percebo, com clareza renovada, que era mesmo inevitável que me tornasse cristã.

Querer a docilidade das plantas, mas não como uma entrega abnegada ao que tiver de ser e vir, antes como quem se fecha à possibilidade de sofrer: é isso, no fundo, o sensacionismo de Caeiro. O olhar de quem busca ver na flor somente a flor e no sol somente o sol, recusando obstinadamente reflexões e metáforas, é tão nítido quanto limitado. Reduzir a vida ao que nos chega de forma bruta pelos sentidos, ser apenas o que se é a cada momento, ir sendo, sem pensar, ir sendo…

Medo, um medo enorme de sofrer. Mas eu nunca entendi que se pudesse desejar a serenidade das pedras. Já na adolescência aquilo me parecia excessivamente morno e, em seu fundamento, irreal. Mesmo quando maravilhada pelo som e pelo ritmo tão envolventes daquelas palavras, era claro que estava diante de uma tentativa de fuga.

A filosofia de Caeiro é apenas um exemplo entre tantos de como os homens tentam driblar a dor por meio de racionalizações fajutas. E é inevitável que seja uma filosofia anti-cristã, pois a religião da cruz, antes de ser religião, antes de tornar-se credo, veio ao mundo justamente como a radicalização da dor: o Deus chagado, humilhado, crucificado, que levou ao extremo em sua própria carne todas as mágoas de que humanamente nos queixamos e nos deu testemunhar Sua Dor para nos ensinar a vivenciar a nossa.

Nunca será diferente: sempre vai doer. Em todos nós. De todos os modos possíveis. Essa é a realidade da experiência humana, e modificá-la não é uma questão de imitar a passividade das folhinhas trêmulas das árvores. Nem é o caso, na verdade, de “modificá-la”. Podemos alterar a fachada do edifício, mas os alicerces vão muito além de nossos pueris sensacionismos.

A única resposta razoável para o problema do mal é o Cristo, e está aí, à guisa de demonstração, a literatura de Dostoiévski. Os males que nos sucedem são fundamentalmente de dois tipos: os que nos acometem pessoalmente e os que acometem aqueles que amamos. Todas – repito: todas – as chagas da humanidade estão contempladas no sofrimento e morte de cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e na dor imensurável de sua Mãe Santíssima.

Sim, o papel de Maria na pedagogia da cruz é central. Quantas vezes nos sentimos feridos, não tanto em nossa integridade pessoal, mas em nosso senso de justiça, diante do mal feito a outrem? E quando esse outro é a pessoa que mais amamos no mundo – existe dor maior?

Jesus e Maria, juntos, nos dão a medida máxima da dor humana e nos mostram por que, e como, suportá-la. É uma lição dificílima, por mais didático que seja o exemplo. Mas está tudo aí – tudo aquilo de que Alberto Caeiro foge como se fosse o próprio diabo (e não é?); está tudo aí, para quem tiver olhos, não apenas os olhos da face, mas aqueles olhos metafóricos, produtos da maturação do espírito, que nos ajudam a tatear os caminhos misteriosos da Criação.

Deus quis, sim, que o conhecêssemos, e não apenas enquanto ente maravilhoso e inabarcável, mas de um modo que, para nós, haver Deus fizesse sentido… Ele Se nos mostrou tão perfeita e inegavelmente Deus – doendo, humanamente doendo – , que o único modo de não O ver desde então é fechar os olhos e “não pensar nisso”.

Essa reflexão meio críptica, meio literária, é meu modo de desejar um feliz Advento aos amigos, especialmente aos que se desejariam mortos por dentro como Alberto Caeiro, julgando haver nisso algum tipo de felicidade.

Que o Menino Jesus nasça no coração de cada um de nós e retifique nossos caminhos.

Posfácio da autora

Escrever poemas sempre fez parte do meu mundo. Se for lícito chamar de livro a qualquer compilação dos textos de um autor, já poderia haver por aí uns dois ou três sob meu nome. Dois ou três livros ruins, na melhor das hipóteses completamente esquecíveis: sou muito feliz por não os ter publicado. O grande desafio foi dosar ousadia e pés no chão quando tive de considerar a publicação deste que, enfim, vai às ruas. Dou-o a público sem temer odiá-lo daqui a alguns anos, sabendo, justamente, que se trata disso: um primeiro livro, com toda a margem de imperfeições que lhe é de direito; um primeiro livro do qual preciso me livrar para seguir adiante e que creio ter feito crescer até seu máximo tamanho. O primeiro livro, afinal, de uma poetisa que já se conhece o suficiente para saber que, grande ou pequeno, deve ser este e não outro o seu primeiro passo.

 

Tive de aprender a conviver com o fato de que posso ser uma boa poetisa, mas não serei o “gênio da raça”. Qualquer que seja meu potencial, a vida que vivi até hoje, somada à que escolhi viver no futuro, inviabiliza a produção de uma obra maior do que meu próprio umbigo, por mais intuitivo que este seja. Meu nicho terá de ser o da lírica de impressões, e minha poesia colhida à margem da vida mais corriqueira, sem grandes aventuras, sem embriaguez; poesia composta como que dentro de um salão de espelhos, atenta às enormidades de uma existência sem rotas de fuga, cujos caminhos, se chegam a inspirar reflexões poetizáveis, nem sempre abrem uma brecha ociosa para o poeta estar a sós com seu ofício. Não sei se ainda terei a oportunidade de aprender muitas línguas e assimilar variadas literaturas; o mais provável é que siga aplicando a fórmula que me trouxe até o ponto onde hoje me encontro: lendo sem parar o punhado de autores que me satisfazem plenamente e tornando-me um amálgama do que aprendo com eles em técnica e tino artístico; atenta apenas às vozes que falam sob medida ao meu ouvido e incapaz de fazer leituras por obrigação. (Fiz um mestrado inteiro tentando corrigir esse vício. No fim das contas, o tiro saiu pela culatra.) Mas um poeta legitimamente grande precisa ir além disso, tendo, não raras vezes, de abdicar da vida mais chã para sobrevoar os espaços (Fernando Pessoa, Bruno Tolentino). Eu perdi o bonde da genialidade, no que me cabia cultivá-la. E no entanto há um alívio tremendo em contemplar com clareza a própria vocação.

 

Aprendi a não desdenhar de meu chamado à poesia. Percebi, entre erros e acertos, que o que posso fazer de melhor no campo intelectual reside nessa atividade curiosa que é recortar a vida com palavras coletivamente musicais. Recebi com surpresa os comentários lisonjeiros de quem me cria experimentada quando estava apenas começando. Aprendi a conter o impulso passional que desfigura o verso sob impressões desordenadas. Aprendi a respeitar cada palavra como um universo único e a desdenhar da noção de “sinônimos”. Cultivei, sobretudo, a paciência com o poema que tarda a estar maduro. Tudo isso em poucos anos, sob o impacto de leituras transformadoras e diálogos, eu diria, inaugurais. Levar a sério a poesia me abriu uma nova dimensão da realidade, onde buscar a forma mais justa de expressar determinada impressão acaba coincidindo com o aprofundamento desta impressão. Descobri que buscar o modo poético de dizer algo é uma forma peculiaríssima de pensar, um pensamento-ato revelador, encantatório.

 

Boa parte deste processo se deu durante meu enfrentamento das formas fixas. Isto que pode, à primeira vista, parecer mero conservadorismo estético bovinamente adotado, foi na verdade a pedra de toque de minha descoberta da poesia. Não se trata apenas de ser “bonito”, ou “harmônico”, ou mesmo “tradicional” (pois “é preciso resgatar nossas raízes devassadas” etc); do que realmente se trata, é difícil explicar, mas tentarei. Minha experiência me ensinou que as formas fixas têm vida própria. Ou não exatamente “as formas fixas”: toda a dimensão material (isto é, sonora) do poema existe sob regras próprias e como que em latência; tal qual uma corda que o poeta busca tocar, e quando a toca ela soa, e segue ressonando já segundo suas peculiares regras interiores. Um poema parece artificial quando o poeta não chega a tocar a corda, mas apenas imita seu som; já quando ele a alcança e consegue libertar sua forma, temos o que se chama inspiração: métrica, rimas, pensamento – som e sentido se desenvolvem num desenho único, e o poema vem à tona perfeito. A forma desdobra o pensamento e vice-versa. Isto é poesia. Isto é inspiração. Mas calma, não estou dizendo que não há poesia fora das formas fixas; quero dizer apenas que o verso livre exige do poeta um grau superior de maestria das formas, ao ponto de poder abrir mão delas e imitar sua música de ouvido. Jorge de Lima teve a educação espartana de seus alexandrinos. Manuel Bandeira, antes de “Libertinagem”, compôs “Carnaval” – livro que tanto amo! Começar a escrever poesia por versos livres é como tentar compor uma sinfonia sem ter jamais ouvido música.

 

Alguns poemas de O Corpo Nulo foram escritos sob o tipo de inspiração descrito acima, tanto que sofreram pouca ou nenhuma alteração desde os manuscritos. Mas são poucos entre a maioria de poemas sofregamente lapidados, nos quais o “o quê” só chegou a coincidir com o “como” após muito trabalho por assim dizer braçal. São duas experiências radicalmente diferentes – a inspiração e a lapidação –, e de cada uma delas pude retirar lições básicas sobre o fazer poético. Por um lado, este livro não existiria sem a tempestade que me fez regurgitá-lo no papel; mas tampouco haveria motivo para chamá-lo “livro” e convidar outros a lê-lo caso ele se tivesse cristalizado naquela inicial figura amorfa. O exercício da atenção, o esforço de aguçar o ouvido para torná-lo capaz de discernir o que objetivamente está sendo dito – não apenas o que ouvimos através da emoção autoral –, a paciência (sempre ela!) quando a figura idealizada se esquiva – aprender, enfim, a “regurgitar com estilo”! Lições de modelagem sem as quais um poeta pode apenas dar tiros no escuro.

 

O fato de O Corpo Nulo ter me proporcionado uma experiência composicional que me pareceu completa foi o que me fez vê-lo como um livro propriamente, em oposição às coletâneas que o precederam. Ele é, porém, o primeiro passo de uma trajetória que pretendo desenvolver ao longo de quantos anos ainda me restarem. Foi para mim o livro da tomada de consciência, da “bigorna da realidade” rachando o crânio do poeta lépido, “que só quer expressar seus sentimentos”. E a sensação é de que, transposto este importante umbral, um mundo inteiro se descortina.

 

Não desejando que esta reflexão, inicialmente desarmada, se torne em um manifesto, concluo-a idealizando um leitor amigável, que terá com meus poemas o mesmo cuidado que tive ao prepará-los. E que eles, os poemas, logrem retribuir satisfatoriamente a atenção recebida.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Sobre o mau otimismo

Texto originalmente publicado no Facebook, em março de 2017.

 

Ontem uma amiga me escreveu pedindo conselhos sobre como ajudar um casal cujo bebê possivelmente nascerá com síndrome de Down.

Eu poderia falar sobre isso por horas e horas. Aquela época – a época da gestação, da incerteza, dos exames intermináveis que só multiplicavam as dúvidas e as angústias – foi como um filme macabro que até hoje, frequentemente, me volta à cabeça. Digo com convicção que nenhum momento após o nascimento da Maria foi tão difícil quanto aquela época.

O que dizer a quem está passando por isso hoje? Como a minha amiga, estando de fora, pode lidar com o sofrimento desse casal?

Sofrimento, sim, para início de conversa. É um diagnóstico difícil, e talvez mais ainda quando incerto, quando tudo o que se tem é uma possibilidade pairando sobre a vida da família como uma nuvem negra. Depois que se tem certeza, se chega ao fundo do poço para dali se ir “do luto à luta” – e a luz no fim do túnel não tarda a aparecer. Mas lidar com a mera possibilidade corrói as nossas entranhas: você não pode se apegar nem ao filho “perfeito”, que você tanto deseja ter, nem ao filho com Down, que afinal talvez nem exista.

Vivi nesse limbo por seis meses. Não “curti” a gestação, não consegui pensar em enxoval e quartinho do bebê, mas também não saí pesquisando loucamente sobre a síndrome, como muitos pais fazem. Simplesmente não conseguia me envolver; todas as minhas forças se destinavam a estar minimamente saudável para chegar ao fim da gestação.

Não pesquisar sobre o assunto, aliás, foi o melhor que eu podia ter feito – hoje sei disso. Na internet lemos principalmente sobre as situações extremas e grandes dificuldades, sobre estereótipos e generalizações, quando a verdade é que ninguém jamais será capaz de descrever o dia a dia, a convivência corriqueira com a criança – que é, precisamente, a tal luz no fim do túnel. Com o tempo e o fortalecimento do vínculo, a síndrome de Down é ofuscada pela vida comum, pelas fraldas por trocar, pelos banhos para dar, pelos sorrisos, pelas conquistas, pela primeira febre, pelo primeiro dente, pelas dificuldades que já não são a vaga e misteriosa síndrome de Down, mas a vida do seu filho. Nenhum artigo científico ou relato em blog de outra pessoa pode dizer como será a realidade particular de cada família e cada criança.

Agora, voltando à pergunta da minha amiga… Quando relembro a época tão conturbada da minha gestação, não posso deixar de notar que grande parte do sofrimento vinha da negação expressa por quase todos ao meu redor.

“Não vai ser não vai ser não vai ser”

Se todos negavam tão enfaticamente aquela possibilidade, então devia ser mesmo algo monstruoso que, se confirmado, significaria a rejeição da minha filha. Os poucos comentários que não se apressavam a afirmar que “não seria” eram, no fim das contas, os que mais me ajudavam, pois não me faziam sentir diante de um abismo terrível. “Se for, vai ser amada do mesmo jeito” – e eu, que não queria “que fosse”, ainda assim guardava no coração as frases desse teor, como um alento contra o pânico implícito no “não vai ser”.

Assim, disse o seguinte à minha amiga: não seja a pessoa com cara de enterro; não diga para a mãe “ter pensamento positivo, que não vai ser”; se você passar meses tratando a síndrome de Down como uma possibilidade horrenda e desastrosa, sua tentativa de sorrir após o nascimento da criança parecerá falsa e entristecerá ainda mais os pais.

Diga a esses pais que por enquanto tudo é nebuloso, mas que quando eles tiverem a criança nos braços eles vão se entender e se encontrar no meio de tantas dúvidas. “Se for, não será o fim do mundo; com ou sem Down, ainda é o seu filho que está aí dentro e todos vamos amá-lo muito, aconteça o que acontecer.”

Nesses momentos iniciais, um dos nossos maiores medos é justamente quanto à aceitação da criança pela família, pelos amigos, pelo mundo. O “não vai ser” é o pior modo de começar essa relação. A criança já é, no ventre de uma mãe que já a ama. Ofertar-lhe amor incondicional é o que de melhor podemos fazer por ela e por essa família que enfrenta seu momento mais delicado.

Uma cruz sem cruz

Texto originalmente publicado no Facebook, em outubro de 2014.

 

Definitivamente, a maior lição da gravidez é o incrível poder de adaptação de nosso corpo e nossa mente. Se de um dia para o outro eu acordasse como estou hoje – com uma barriga gigante, dores nas articulações, o diafragma comprimido até a falta de ar e uma criatura viva se contorcendo nas minhas entranhas – provavelmente enlouqueceria. Mas, não por acaso, levei oito meses para ficar assim. E o fato é que agora todos esses incômodos incomodam muito pouco, pois vieram sendo assimilados lentamente, a cada novo dia de gestação. Andar dói e deitar é impossível, sim – mas isso significa apenas que a normalidade da gravidez é diferente do que costumamos ter por normalidade. E isso não é apenas suportável – é natural e bom. Como diz S. Josemaría Escrivá, é uma cruz sem cruz.

É muito difícil perceber essas coisas todas e não sentir uma vontade incontrolável de implorar a todas as mulheres que não se privem dessa experiência. Existe um mundo de tesouros escondido no potencial feminino para gerar filhos, que não faz falta enquanto você não sabe que ele existe, mas que depois de descoberto agiganta a pessoa que você é.

O último mês de gestação é a prova de que o ser humano pode viver em perfeita harmonia com o incômodo e a dor, sem precisar de subterfúgios ou qualquer anestésico além de sua própria capacidade de adaptação. Não é nenhum bicho de sete cabeças. Literalmente: é a vida.

Relato de parto: um parto, duas dores

Texto originalmente publicado no Facebook, em novembro de 2014.

 

Como tantas mulheres, sonhei durante toda a gravidez com um parto normal, mas acabei passando por uma cesariana. Só que no meu caso houve uma particularidade: passei por todo o trabalho de parto e entrei na faca quando meu bebê já estava quase escapulindo da barriga. A história é a seguinte:

A Maria estava sentada. Quem entende o básico do idioma “gravidês” sabe que isso quase sempre significa parto cesáreo, pois o parto de bebês pélvicos (isto é, sentados) é considerado de risco. Sempre tive esperança de que ela ainda virasse, mas à medida que as semanas avançavam a triste probabilidade da cesárea ficava mais concreta. Conversei com minha obstetra e concordamos que ao menos esperaríamos o início do meu trabalho de parto, ao invés de agendar maquinalmente uma cesárea. Espero que ao fim deste relato fique claro o motivo da minha insistência nesse ponto.

Pois bem: 9 de novembro de 2014, 38 semanas e 1 dia de gestação. Teoricamente, a Maria ainda podia levar duas ou mesmo três semanas para querer vir ao mundo. Eu já vinha tendo algumas contrações de treinamento e cólicas doloridas, mas nada que indicasse um parto iminente. Aquele era, portanto, um domingo como qualquer outro. Vitor e eu fomos à Missa pela manhã, depois almoçamos uma deliciosa (e apimentada!) feijoada na casa da minha sogra. À tarde, fomos visitar nossos compadres Rafael Falcón e Day Teixeira , e entre um café e outro eu esvaziei aproximadamente meio pote de sorvete de creme com amendoim e chocolate (santo remédio para a azia chata que dá no fim da gravidez – é sério). Entre as oito e as nove da noite, ainda na casa de nossos compadres, estávamos diante de uma mesa de pães, frios e um bolo esquisito que o Rafael comprou. (Gravidez dá muita fome, gente!) Perto das dez, estávamos em casa e às onze eu estava na maca do centro cirúrgico prestes a ganhar minha filha.

Mas peraí: cadê o trabalho de parto?

Por mais bizarro que pareça, eu passei todo aquele domingo em trabalho de parto. Na madrugada de sábado para domingo, acordei com muita cólica, mas não era nada que já não tivesse acontecido antes. Tomei um Buscopan e voltei a dormir. Quando acordei, percebi que as supostas contrações de treinamento estavam doloridas e ritmadas: vinham a cada dez minutos, como um reloginho. Mas foi durante a Missa que me dei conta de que algo realmente diferente estava acontecendo, e senti uma felicidade indescritível. Cada fisgada na lombar indicava que meu parto estava próximo e isso – não só o fato do parto, mas a sensação de meu corpo trabalhando ativamente para prepará-lo – era uma grande alegria. Eis aqui um primeiro motivo para se valorizar o trabalho de parto: a preparação psicológica (de base fisiológica, hormonal) da mulher. Hoje eu sei que não é à toa que dizem que a ocitocina (o hormônio que comanda o parto) é o hormônio do amor. Durante aquela Missa minha vontade era abraçar todas aquelas famílias e crianças. Eu estava sentindo cólicas doloridas, mal conseguia ficar de pé, e isso significava que meu parto estava próximo, minha filha existia e meu corpo era uma fábrica de vida – com o perdão da expressão cafona.

As contrações se mantiveram ao longo do almoço e durante toda a tarde. Doíam, sim, mas era perfeitamente possível suportá-las sem fazer um escândalo. No máximo, durante alguma conversa profunda e filosófica (só que não) com o casal Falcón, eu parava no meio de uma frase para pôr as mãos nas costas e fazer cara de dor. Com o cair da noite, foram ficando mais doloridas e a intervalos menores. Ainda assim, não era uma dor que lembrasse os gritos desesperados das mulheres que estão parindo, como costumamos concebê-las. Lembro da Day tentando acalmar o Vitor (dois olhos verdes arregalados cada vez que eu parava para pôr as mãos nas costas): “Calma, Vitor, quando for o parto pra valer ela vai berrar, não ficar aí conversando”. Eu também pensava o mesmo. Quando Vitor e eu fomos para casa, as contrações já estavam vindo de oito em oito minutos e às vezes de cinco em cinco. Eu li muito sobre gravidez nos últimos meses e sabia perfeitamente que contrações doloridas de cinco em cinco minutos querem dizer trabalho de parto. Ainda assim, continuava incrédula: onde já se viu grávida em trabalho de parto comendo sorvete de amendoim e batendo papo a tarde inteira? Aquilo tinha de ser um episódio de preparação, em algum momento as contrações parariam. Liguei para minha médica, apenas comunicar meu estado e perguntar se eu poderia tomar Buscopan para conseguir dormir. (Mais tarde, no hospital, ela me diria: “Sua filha quase para sair e você querendo tomar Buscopan!”). Eu não queria ir para o hospital à noite, e sobretudo não queria ir para o hospital antes da hora, mas não teve jeito: minha médica me intimou a ir imediatamente. Pensei com tristeza: “É isso, vou ser mais uma que se interna por um alarme falso e termina numa cesárea sem trabalho de parto.” Resignada, segurei na mão de meu marido branco feito um lenço e fomos.

Jamais vou esquecer aqueles vinte minutos no carro a caminho do hospital. Digo com toda certeza: foi um dos momentos mais felizes que tive até hoje, daqueles que têm de constar no filme que conta a história de nossas vidas. Se eu tinha alguma dúvida de que estava em trabalho de parto, durante aquele percurso não tive mais. As contrações passaram a vir FORTES, e pela primeira vez em todo o dia me deu vontade de gritar, e eu gritei, mas também ria, enquanto meu marido assustado dizia “Eu não acredito que você está gritando de dor e dando risada ao mesmo tempo”, e ria também. Tive seis contrações em vinte minutos, e nos pequenos intervalos em que elas paravam eu esperava ansiosa pela próxima. “Está acontecendo!” – E naquele momento eu me sentia preparada para tudo, para todo o esforço e a dor que ainda tivessem de vir para que minha filha nascesse. Lição número dois sobre o trabalho de parto: ele transforma a dor física em uma verdadeira “cruz sem cruz”. Não é lenda, não é mandinga, não é acaso: são hormônios, mesmo.

Cheguei ao hospital com 8 centímetros de dilatação. Para quem não fala “gravidês”, isso quer dizer que mais um pouco e os pezinhos da minha filha sairiam para fora. Minha médica me deu uma bronca, pois o bebê já estava muito baixo e talvez não fosse mais possível fazer a cesárea. Confesso que não considerei isso uma má notícia… Mas nos fim das contas foi possível, sim, e fui encaminhada ao centro cirúrgico para uma cesariana de emergência.

Aí termina a parte bonita e vigorosa do meu parto. Mas não vou me fazer de vítima e dizer que fui submetida a qualquer coisa. Não, eu topei fazer a cesárea, pois estava ciente de que o parto pélvico, para ser realizado com segurança, requer uma técnica específica e exaustivamente praticada. Se minha médica achava melhor não fazer, então devia ser melhor mesmo. Meu objetivo ao fazer esse relato não é denunciar qualquer “violência obstétrica” que eu tenha sofrido (apesar de que sofri, sim, mas da parte do hospital e não da obstetra, que é uma das pessoas mais generosas e humanas que já tive a sorte de conhecer). Meu objetivo é me dirigir às mulheres que compram o discurso de que “não faz mais sentido passar horas e horas sofrendo com dor, quando a medicina evoluiu e já dispomos de uma cirurgia rápida e prática como a cesariana.”

Bom, eu passei aproximadamente 14 horas em trabalho de parto, durante as quais estive com minha família e meus melhores amigos, comi feito um leão e compartilhei momentos de intensa intimidade e alegria com meu marido. Segundo minha própria médica, se o bebê estivesse encaixado, a fase expulsiva não teria levado mais de 15 minutos e alguns empurrões, provavelmente sem anestesia. É claro que doeu, sobretudo no final, e expulsar o bebê teria doído mais ainda, mas acreditem quando digo que não doeu nada! Pelo contrário, terei sempre um carinho imenso por aquelas 14 horas. Já o que veio depois, a partir do momento em que fui levada ao centro cirúrgico… Nem preciso entrar em detalhes. Basta dizer que quando minha bebê nasceu eu só a vi de longe e só pude segurá-la nos braços no dia seguinte, e isso porque fiz o esforço de ir me arrastando, recém-operada, até o berçário. Também não preciso descrever em detalhes como a anestesia fez cair minha pressão e fiquei passando mal ao longo de toda a cirurgia, semiconsciente, e depois fiquei por quase três horas (TRÊS HORAS!) sozinha numa sala de recuperação, tremendo pelo efeito da anestesia (“É normal, daqui a pouco passa”, diziam sem sequer olhar na minha cara as enfermeiras), sem saber por onde andavam minha filha, meu marido, minha mãe. O pior é que o efeito da anestesia foi passando mesmo, e com isso comecei a sentir a dor dos cortes, e nada de me levarem para o quarto ou me darem um analgésico. Precisei chorar e implorar às enfermeiras que notassem minha existência e me ajudassem. Das três a que implorei, apenas uma me ajudou, as outras continuaram limpando a sala.

Sei que minha experiência, tanto com o trabalho de parto quanto com a cesárea, pode ter sido um caso isolado, mas foi assim que aconteceu. E para mim a conclusão a partir de tudo isso é óbvia: nas cenas descritas acima, há dois tipos de dor: uma natural, produzida pelo próprio corpo com um objetivo determinado, a qual nosso organismo se prepara para receber, de modo que, quando ela vem, estamos física e mentalmente preparados para suportá-la; e outra artificial, vinda de fora sem qualquer aviso prévio, o que faz com que nosso corpo se defenda contra ela, produzindo, por exemplo, infecções e febres, e daí a montanha de remédios do pós-operatório, para tentar reequilibrar o organismo.

Vai fazer sete dias que passei pela cesariana e ainda não consigo andar direito. É difícil amamentar minha filha, pois preciso apoiá-la sobre a barriga cortada. Digo novamente: não quero demonizar de modo absoluto o parto cirúrgico, que evidentemente salva vidas e é, em seu devido lugar, um avanço, mas o discurso de que ele é prático e indolor é FALSO. Apenas isso. Comparar favoravelmente a dor do pós-operatório à do trabalho de parto é um grandessíssimo absurdo!

Dou graças a Deus por ter, quase que por acaso, levado meu trabalho de parto às últimas consequências, pois não tenho dúvidas de que isso foi fundamental para me preparar para receber meu bebê, além de ser a causa por trás do colostro vazando do meu peito logo após o parto, para surpresa das enfermeiras. Já que é preciso ver o lado bom de tudo, faço agora meu máximo para aprender também com a experiência da cesariana, mas espero do fundo do coração nunca mais precisar repeti-la.

No futuro, quando pensar no parto da Maria, a imagem que virá à minha memória será a daqueles vinte minutos no carro com o Vitor, a caminho de nossa nova vida em família, rindo e gritando de dor ao mesmo tempo, como em todas as situações que nos modificam para sempre.