O imaculado coração de Maria

Texto publicado originalmente no blog A caminho de casa, em maio de 2015

 

“Era em maio, foi em maio,
sem calhandra ou rouxinol,
quando se acaba nos campos
da roxa quaresma a cor,
e às negras montanhas frias
vagaroso sobe o sol,
embuçado em névoa fina,
sem vestígio de arrebol. (…)”

— Cecília Meireles, “De outro maio fatal”, in: Romanceiro da Inconfidência.

Certas cronologias só nos resistem inteiras na memória; é possível esboçá-las em pensamento, mas dificilmente em palavras escritas.

Se estivesse escrevendo o roteiro de um filme e tivesse de escolher uma cena como ponto de partida, diria que tudo começou nove anos atrás, numa tarde — possivelmente de maio, não lembro ao certo — frivolamente alegre. Caminhava pela rua com a primeira amiga que fiz na faculdade quando, a caminho da casa dela, passamos em frente a uma igreja austera, cor de cimento, em cuja fachada se lia: Refúgio dos Pecadores. Rimos. Eu achei muito cômico eles — esse povo da igreja — admitirem que ali só se reuniam pecadores!

Corta. Anos mais tarde. Por uma dessas coincidências da vida, que se reproduzidas na arte sempre nos parecem inverossímeis, “forçação de barra”, fui morar naquela mesma rua, a uns cem passos daquela mesma igreja. Levei algum tempo para me aperceber da coincidência, embora recordasse ser aquele o bairro da agora ex-amiga. A proximidade era tanta, que a janela do banheiro do apartamento abria para um adorno da igreja: uma estátua da Virgem Maria. Aquela era, afinal, a Paróquia do Imaculado Coração de Maria.

Meu mundo se fez e desfez muitas vezes à sombra daquela igreja. Conquistas, fracassos, encontros, ilusões, desilusões, choro e ranger de dentes — entre aquela risada frívola nove anos atrás e o primeiro passo semiconsciente que dei para dentro do austero recinto uma vida inteira se passou. Hoje vejo claramente que minha juventude foi a história dos tropeços que me levaram a cruzar o umbral daquela igreja.

Não que em algum momento eu tenha sido verdadeiramente ateia. Ria das coisas religiosas, sim, mas rezava todas as noites a um Deus que, eu tinha certeza, morava na minha cabeça. E isso me bastava: um Deus como um ponto de luz caloroso apaziguando meus pensamentos. Ele, e a Virgem Maria. Nasci e vivi até o início da adolescência em Belém do Pará, onde a devoção mariana é fortíssima. Não me recordo de nenhum período da vida em que não rezasse a Maria, mesmo que caçoando e desdenhando da Igreja e rezando ao Deus “concebido aqui dentro da minha cabeça, pois para rezar não preciso ir a lugar nenhum”. Se esse tipo de ignorância pode ser fruto de uma devoção mariana distorcida, ao mesmo tempo hoje não tenho dúvida de que foi o fio fragilíssimo dessa mesma devoção incompleta que me permitiu um retorno mais consciente ao cristianismo.

Sempre houve, portanto, Maria. O que eu custava a entender era o que ela, que me era tão íntima, fazia ali, na fachada fria daquela igreja…

É impossível narrar o processo todo — não sou Marcel Proust. A próxima cena, avançando mais alguns anos, já me encontra a poucos meses do casamento e tendo de vencer medos que se multiplicavam. Foi nesse momento que decidi consagrar minha primeira filha — ainda longe de ser concebida — à Virgem. “Minha primeira filha se chamará Maria, se me ajudardes a desfazer tantos nós.” Repeti essa promessa incontáveis vezes diante do pequeno altar que tinha em meu quarto. E os nós, um por um, se desfizeram, deixando em seu lugar uma crescente sensação de gravidade, de estar mergulhando cada vez mais no sumo da vida, à medida que ia avançando para dentro da idade adulta pelas mãos de Maria. Mesmo antes de minha filha nascer, aquele compromisso com a Virgem já mostrava sua força.

Nessa mesma época, li o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, de S. Luís Grignion de Montfort, onde encontrei um modo de formalizar a consagração que em meu coração já estava feita. Neste texto riquíssimo, o santo explica os muitos bons motivos para um cristão se consagrar à Virgem Maria, sem deixar de enfatizar que fazê-lo é o mesmo que se alistar para uma guerra. Não cabe aqui entrar em detalhes nesse ponto; digo apenas que para mim era um ponto muito claro. E — dito e feito — o período de preparação para a consagração formal foi dificílimo. Adoeci, emagreci 7 kg em quarenta dias e me consagrei quatro dias antes do meu casamento. A jornada estava apenas começando.

Por algum motivo (provavelmente por ter temperamento melancólico), sempre achei que teria dificuldade para engravidar. Mas eis que, já no primeiro mês de casada, vivia dentro de mim minha pequena Maria. Penso que ela ter vindo tão rápido foi um modo de não haver dúvidas de que se tratava de uma consequência direta da minha consagração, um sinal de aceite enviado por Deus. Eu disse “Envia-me”, Ele disse “Vai! Sempre no rastro de minha Mãe”. E eu fui. Tenho ido, e hei de ir enquanto tiver forças.

Não termino de me surpreender com o quanto minha Mariazinha é uma missão ideal, com o quanto tudo nela remete ao compromisso que firmei com Deus por meio da Virgem Maria. S. Luís Montfort explica em seu livro que os santos são pessoas que conseguiram se tornar semelhantes a Jesus, e que no coração de Maria tudo o que há é Jesus; de modo que os consagrados a ela, tomando de empréstimo seu coração de mãe, recebem Jesus, aproximando-se Dele por meio dela. Assemelhar-se a Maria é bom porque nos une a Jesus.

Para que eu não esquecesse nem por um instante o sentido da consagração que fiz, a Virgem me deu uma Mariazinha com um pequeno coração machucado, e como missão acompanhá-la pelo calvário que lhe restituirá a vida. A bondade de Deus é tamanha, que quando Lhe pedi uma cruz para carregar em Seu nome ele me deu um pequeno ser para amar, a cujo sofrimento devo assistir, lembrando que antes de mim houve Maria, mãe de todas as mães. É realmente impossível conceber uma cruz ao mesmo tempo tão pesada e tão doce.

Maio é o mês das mães. Neste maio fatal, passarei pela primeira grande provação de minha jornada materna, acompanhando meu bebezinho em uma cirurgia cardíaca de grande porte. Peço as orações de todos vocês. Com a certeza de que no final o Imaculado Coração de Maria triunfará.

***

Atualização em julho de 2017: A cirurgia cardíaca da Maria ocorreu em 18 de junho de 2015 e, graças a Deus, foi um sucesso. Hoje ela vende saúde e seu coraçãozinho está como novo. Leia aqui o relato de nossa estadia no hospital.

3 comentários em “O imaculado coração de Maria”

  1. Lindo relato, querida Lorena! Louvado seja Jesus, por nos dar uma mãe tão terna e forte, para nos segurar pelo caminho da vida. Um beijo p vc e sua linda família!

  2. Jaqueline Andreza Rodrigues

    Maio o mês que nasci, No dia 7. Sempre o amei por conta das mães, mas em especial pela Mãe das mães e que alegria ler seu relato em plena batalha espiritual, aonde eu e meu esposo estamos recitando o Santo Rosário justamente para derrubar uma muralha espiritual declarada por nosso confessor. Que bálsamo ler esse relato após, anos e hoje 24/07/20 em meio a uma pandemia, o Bom Deus por meio de sua Santa Mãe vem comigo falar em seu relato.

    Deus a conserve no ♥ Imaculado da Sempre Virgem Maria.

    Abraço

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