Poemas

Servir, morrer, servir

I

Segura a minha mão, porque é revolta
essa água sem razão que nos transborda;
aziaga, vem de dentro, ou vem de fora,
clarão de tempestade ardendo à solta,
que sem se demorar já nos devora.

Quiséramos beber de uma água limpa,
orvalho entre a neblina quando a aurora
permite à luz que dance e frutifique.
Mas a sede que temos nos afoga
e a cada novo dia a fome assiste.

II

Deixar vir um querer todo diverso
deste, que ora cobiça, ora adereço,
vai dar no coração do precipício:
desejar febrilmente o pó. Desejo
plantado numa fome sem raízes
e em vão multiplicado, em vão crescendo,
porquanto ensimesmado, estéril e triste.

III

Servir como entender que o que persiste
quando a torrente em fúria nos afoga
é a gota de suor fresca, invisível,
e a lágrima sem dor que se evapora,
trazendo o amor à escura superfície.

Servir de olhos abertos, sem alarde,
com os lábios secos, mudos, porém ávidos,
servir com a concha mouca dos ouvidos
buscando discernir, entre alaridos,
qual forma há de servir que desagrave

a escravidão mundana aos vis sentidos.

IV

Servir, morrer, servir; ser lírio ou ave
nos campos em que a fome não fecunda
a planta traiçoeira dos cuidados –
a cada dia um mal, somente, e a busca
é abrir-se a receber os bens mais altos,
aqueles de que a Graça não descuida.

____

L.M.C., 2017

Noturno sobre livre arbítrio

The art of losing is not hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster…

— Elizabeth Bishop, em poema traduzido por Bruno Tolentino
em O Mundo Como Ideia

*
Busco entender, Bruno, à luz desses versos
que tu citaste em paráfrase alheia,
algo da morte. Eu já rezei três terços

tentando clarear minhas ideias,
mas essa noite é maior do que eu,
ela circula pelas minhas veias

junto aos teus versos. Pelo amor de Deus,
Bruno, me diz se as coisas são fadadas
ao destino que as afinal perdeu,

se o que foi perda nascera cilada
como o que esplende é destinado ao brilho;
me diz, Bruno, se a liberdade é dada

integralmente ou num vago caminho,
se o já nascer com natureza é sina
intransponível, ou se vai do estilo

que ir vivendo aos poucos nos ensina.
Eu, por exemplo, nesta madrugada:
penso na voz rouca que me destina

tão sutilmente a me entregar ao nada,
ou ao infinito – como vou saber? –,
mas o exercício mental me embriaga

mais que esclarece. O que meu corpo quer
(dormir, sorver ar puro) é rejeitado
pela proposta maior que é viver

dentro dessa espiral, desse quadrado:
vou lendo os versos que o Bruno escreveu,
esse meu esquisito antepassado,

e dando o tom que essa noite me deu
ao poeminha idiota que, depois,
far-me-á vergonha apenas por ser meu.

Um rol de mortes terríveis, atroz
em sua óbvia futilidade,
me vem à mente e se procuro o algoz,

a mão capaz de mover tudo que arde,
encontro um novelo malsão de culpas
e nenhuma ao final. Então me invade

o tipo de revolta mais estúpida:
por que, meu Deus, além da dor da vida
de quem viveu incapaz de uma súplica,

por que – alguém, por bondoso, me diga! –
depois de terem vivido no inferno
esses coitados que a vida fustiga

ainda têm de ir parar no Inferno,
pois, loucos, se atiraram da janela?
“Todos existem livres. Sempiterno

e onipresente é o brilho dessa Estrela,
o amor do Pai. Quem incapaz de vê-la
cegou-se livremente, porquanto Ela

não cessa de brilhar jamais.” A pena,
então, me cai dos dedos, choraminga:
“Ó, Pai, não logro a certeza serena

de que, nesse presente mundo, à míngua
de tudo o mais basicamente humano,
basta-nos ter boa vontade – a língua

de Deus fala por todos… Mas o engano
às vezes, tudo indica, fala mais.
Há quem nasça fadado ao desengano,

é o que parece – há um algo que induz
as almas ao abismo sem que elas
tenham lá grandes chances. E, ao invés,

existem as que se salvam quando nelas
qualquer coisa de fora as inverteu,
movendo-as como a chama de uma vela

ilumina ao redor. Quem compreendeu
o drama viu que há sinas discrepantes,
e é assim que eu me pergunto por que eu,

meu Deus, fui ver essa luz causticante
e salvadora, em vez de um outro irmão;
quem quer que fosse, desde que diante

do bem que eu vi, nunca ousaria o ‘não’.
Se é tudo uma questão de Graça, ó Pai,
ou falta dela, então o Inferno é vão.”

Há coisas que, se o dom da perda esvai,
– diz lá a Bishop, apud Tolentino –
é porque existe um dom da perda. Mais

ainda, têm “perder” no seu destino.
Isso se aplica à vida? Os suicidas
perdem-se em nome de um desatino

atinado, glosando o que as feridas
da perda ofereceram como mote?
Pergunto se essa força que os instiga

coincide com seu fado, com sua sorte,
ou qualquer desses termos sorrateiros
que denominam o que precede a morte.

Há a força propulsora, o derradeiro
pendor, algo assim como um dom da perda?
Existem dons? Se sim, o desespero

do suicida que a loucura verga
para além da janela não é só dele.
Donde, não é tão livre como prega

a grã filosofia em que se espelhe
nosso mundo mental; o determina
(ao suicida) algo que, em vez, o acolhe,

dá-lhe a beber do leite da má sina.
Não sei se estou conseguindo explicar
(ainda mais tentando-o em terça rima)

o que essa madrugada – a insônia, o ar
dessa noite maligna – me incutiu.
Tem a ver com liberdade, com causar-

mos realmente o que nos sucedeu.
Sei quanto o livre-arbítrio é ideia cara,
mas sei também que a mim a Graça encheu

do que eu não merecia – a minha cara
de espanto, gratidão e de temor
é testemunha. Essa dádiva rara

por que não colhe a todos, pleno amor?
___
(2011-2015)

Consagração

“Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria.” (S. Luís Maria G. de Montfort)

*

Como não sei, Senhora, erguer-me além de mim,
e o que sou me encaminha a um mísero porvir;

como trilhar sozinha o labirinto horrendo
de cada dia é atalho a terminar perdendo

o fio da meada, como o já perdi
seguidas vezes; como hei de ceder, enfim,

ao pesadelo, se não me livrar de mim,
entrego-me, Senhora, inteira aos pés de ti:

o que tenho, o que sou, o que faço, este canto,
tudo depositado sob o casto manto,

para que tu defendas contra o mal da morte
e da aniquilação. Teu poderoso norte

ostenta sobre a nossa procissão de cruzes
a luz esperançosa com que tu conduzes

as almas mais penosas à conciliação
com a verdade encarnada no teu Coração.

Serás Senhora minha, e eu, se tua escrava
souber – ventura minha! – ser, livre das garras

do mundo em mim, Senhora, então serei feliz
como o só é quem já não é mero aprendiz

da anatomia de teu seio lacerado,
dor que alivias na dureza de teu fardo,

tu que doendo sabes transcender a dor,
compadecendo-te de toda dor maior

(como se houvesse alguma comparável à tua;
nem à Dele, talvez – que Ele era Deus e tu uma

frágil mulher, calada sempre, e torturada).
Senhora minha, dou-te algumas poucas lágrimas

com que aliviares os pesares do jardim
do mundo, que te espera, às voltas com seu fim.

Bem sei que não mereço interagir com a Graça,
mas cega entrego-te tudo o que, em teu regaço.

pode alcançar a altura do amor de teu Filho,
Ele o Rei Redentor, a Verdade e o Caminho.

Intercede por nós, Senhora, medianeira,
empresta-nos tua luz, para que se pareça

nossa infinita pequenez com tua realeza
e o Pai tenha misericórdia e o Filho esqueça

nossa impostura diante de tua casta imagem.
Em ti, Senhora, todos os nós se desfazem;

conciliadora, tu reúnes sob o facho
de luz de teus olhos maternos nossos passos

e pacificas mesmo o que não se alivia,
como a dor que arde em ti. Pois eis-me aqui; envia-me.

Noturno na Noite de Natal

Persigo a cada conta do rosário
o peso e a paz do sono.
Não basta transbordarem os olhos rasos
da dor que não se conta,
nem faz lá diferença estar cansado
há dias nesse encontro
da fé com o desespero e o desamparo;
a luz, se não desponta
em certos indefesos descampados
marcados pela sombra
venial, capaz de encher todos os mares,
não regará os escombros
de dons desperdiçados, faltas graves.

Recorro às asas mudas do rosário
como à luz de uma vela
quando eis a escuridão de lado a lado;
são mudas pois severas
em sua fixidez de candelabro,
mas mesmo sendo pedras
são leves e intangíveis como as asas
do colibri mais breve,
desfazem-se entre os dedos que as abrasam
rogando por que empreguem
seu basto poderio, as rubras achas
que queimam o que libertam
e tornam em luz maior a cinza escassa.

Tremendo e suplicando, encontro a chave
ao sono que se aninha
entre os braços da Cruz que a Mãe chorava.
As horas de agonia
que ela regou com lágrimas suaves
vêm dar consolo à minha
desolação na noite que se acaba
entre o horror da visita
de um medo sem objeto e um amor que indaga
qual dor há nessa vida
não seja mera sombra dessa chaga
muito mais dolorida
quanto mais de outro mundo e solitária.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Permanência

Contemplo com emoção a vida amena,
a soma desses dias que vivemos
sem perceber que passam, que passamos.
E entanto do que finda há algo que emana

e se acumula a um canto, como pó,
ou antes como a pedra preciosa
gestada nas entranhas do rochedo
à custa da erosão de alguns milênios.

De tudo o que vivemos, dessas horas
de doce dormitar diante do espelho
sem ver que envelhecemos, sobrevive

claro no sobretempo o amor que jorra
desde a ancestral nascente que semeias
em meu corpo de terra, redivivo.

 

 

Se a mim me der a vida te ver velho,
tua loura cabeleira embranquecida
e ao fundo de olhos calmos, de partida,
a certeza de quem se sabe eterno,

se a ventura eu tiver de estar contigo
ao fim da estrada longa e pedregosa,
sabendo que tuas mãos breves recitam
em cada linha a vida que era nossa,

não temerei que o chão se abra e eu não sinta
mais a trepidação das horas duras;
que o tempo se desfaça em bolhas, plumas,

contanto que este alento se consinta:
sorver tua presença transformada
em pura essência, quando o mais for nada.

Cantiga do menino branco

Os teus olhinhos pensativos,
menino branco (eras translúcido
quando em meu sonho entraste) e tímido,
passeiam sobre os móveis rústicos

que nosso lar doce mobíliam.
Não vêem, porém, palmo adiante,
como num transe, e se se aninham
no pó de sombra sobre a estante

onde dormitam nossos livros,
logo alçam vôo – vão tão distantes
os teus olhinhos pensativos,
ó meu menino muito branco,

que só repousam (sem destino
definitivo que os estanque)
lá onde o tempo ainda engatinha
e dorme o sono das crianças.

O Touro Contra a Morte

Touro louríssimo, teu torso
forjado à força de antiquíssimas
batalhas sem ouro vencidas
vem dissolver-se nas pupilas
com que fulminas, sem esforço,
pedra selvagem e estrela fria.

Com sempre mansa maestria
de quem não mede a própria força,
pois que de si mesmo deposto
para melhor legar-se à lida,
teu passo é torto à revelia
da paz que emana de teu rosto.

Segues em frente, e em frente, e após
tua marcha zonza e imperativa
eis que desponto, a persegui-la,
sombra no rastro de um sol: touro,
tu que me arrastas pela vida,
que houve entre a noite e o nosso encontro?

As madrugadas mal cabiam
dentro do vão da minha fome,
eram chacinas repetidas,
todas idênticas, e o corvo
de uma Lenora mais antiga
vinha pontuá-las com o agouro

de seu “Não mais”, e eram sozinhas
as minhas lágrimas de assombro.
Eu não sabia que tu vinhas,
ponto de luz sobre o horizonte,
e às vezes dava por perdida
essa batalha contra a foice

de um desespero que trucida.
Touro de luz, forma de amor
a um tempo íntima e inaudita,
tu, a caminhar como caminhas,
com a retidão dos homens sós,
soubeste ver nas entrelinhas

do desencanto o meu melhor,
espécie de novo batismo
dentro das águas de teus olhos
místicos, límpidos: teus olhos
lançando, em busca de um destino,
sua chama em torno — são meus sóis.

Touro louríssimo, antiquíssimo,
esse céu triste, que revolves
em teu sonho sôfrego, habita
também as mágoas de meu corpo —
é o mesmo céu que, enfim, nos liga
pelo tendão da angústia, exposto.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Domingo

“Não é fogo legítimo essa chama,
como é falso e forjado aquele mármore;
o que brilha no altar é luz de lâmpada;

não se sabem os frutos pela árvore?”
É o que penso, diante da coluna
de cimento, pintada como mármore,

sustentando, entre outras, a fortuna
espiritual nos vácuos dessa igreja.
Ver as coisas de Deus em forma humana,

tantas fachadas, ritos — não que seja
má em si a presença do sensível
germinando entre o bem que a alma enseja,

e também, de que modo, que intangível
entidade oferece-se a que entenda-a
a humana razão, sem a carne viva

de algo como esta igreja? Esta tenda,
circundada de espinhos e deserto,
fosse ela só espírito, a contenda

por que veio sofrer seria um incerto
jogo de luz e sombra, nulo aos homens.
Vejo aqui deste banco bem de perto

como é frágil a estrutura, como somem
ofuscados por cores e tamanhos
os dois olhos de Deus, sem cor, que luzem.

Ou talvez são os meus que, em meio ao sonho
impregnante do mundo como ideia,
não conseguem senão ver quanto é estranho

ter a carne do eterno entregue em ceia
à manada inclemente, que tem fome
de sofrer e que sofre nessa teia

asquerosa, sem mal saber-Lhe o nome.
É hora da comunhão, que longa fila,
pedem as almas sofridas que Ele as dome.

Eu não vou até lá. Não estou tranquila,
ou serena que possa receber
em meu corpo este Corpo. Se vacila

minha fé, é que os olhos sabem ver
melhor que o coração sabe entregar
suas correntes à redenção no Ser.

E, no entanto, percebo quanto há
de amor puro, de pura expectação
nessas faces cansadas que Ele dá

à luz, não porque saibam de antemão
compreender o mistério que as consome,
mas por somente ansiarem a exaustão

no calor dessa luz, que aos olhos some.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Rapto

Do centro de um mar parado,
teu primeiro movimento
não recordo se foi valsa,
se rodopio ou aceno.
Como foi que tu chegaste,
precisamente, não lembro.
Se acaso furtei-te ao nada,
ou tu que, por acidente,
vieste fazer morada
segundo o sopro do vento,
ou talvez se necessário
desde o início dos tempos
era teres hospedagem
em meio a meus galhos secos.

 

Pensando bem, eu escutara
uma noite, no ar perdido
que apavora as madrugadas
— ou talvez foi no repique
dos sinos dominicais —
algo prenunciar tua vinda:
certa música sem escala
definida, mas bonita,
como um verso recitado
em língua desconhecida,
mas cuja cadência causa
comoção brusca no ritmo
interior de quem se cala
para mais nítido ouvi-lo.

 

Eu portanto te esperava
antes de saber que vinhas.
Meu corpo te antecipava
com suas fibras e feridas,
pronto para dilatar-se
conforme a tua medida.
Que tu vieste transformá-lo,
multiplicando sua vida,
somando-lhe mais que a falsa
razão de suas cicatrizes.
Tua fome limpa e descalça
percorre — um bom calafrio —
minha espinha acostumada
às voragens do vazio.

 

Mais cedo eu te abandonara
batendo à minha porta.
O convite que tu fazes
— morarmos ao teu redor —
lá no início vem de graça,
mas, se a desgraça é maior,
quem, faminto, a regalar-se
embrenha-se em nossos ossos
é um falso orgulho, se fausto.
Bem cedo aprendi de cor
a recitar ao contrário
teu credo que é todo amor
e acostumei-me a odiar-me
e a ti, que ias aonde eu fosse.

 

Permitirás que eu te embale
docemente, docemente,
assim, pousado em meus braços?
Não moras mais no meu ventre,
já tens a forma de um pássaro,
e és sempiterna a semente
do voo dorido, mas alto.
Desde que fixaste dentro
de mim, como um sobressalto,
a certeza de que vens
lá de onde as noites se acalmam,
sou de bom grado refém
do sonho que tu sonhaste
para que fôssemos plenos

nesse rapto: a dor do parto.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Exórdio

Há mais que chama na clareira
onde os outonos se consomem;
em todo fogo há primavera,
o fim que vem não é do fogo.

Há mais que chama ao seu encontro
quando entre cinzas degenera
uma carcaça que era um corpo;
algo que inflama e persevera

nesse convite um tanto aflito.
Meu Deus, se tudo é infinito,
deve perecer a matéria,

seus pontos de dor consumindo
como fogo pelas artérias?
Os caminhos do teu batismo.

 

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.