Mês: outubro 2021

O feijão e o plástico

Esses dias, briguei com meu marido (e ele comigo). Tivemos dessas discussões repletas de silêncios e meias palavras, de que, no entanto, saem ambas as partes cheias de mágoas profundas.

Fomos dormir brigados e, no dia seguinte, como não podia deixar de ser, mantive meu silêncio de túmulo. Calar é meu movimento involuntário nessas ocasiões; é mais fácil do que lidar com o problema e permite, à mulher injustiçada, saborear mais intensamente a raiva e a autocomiseração.

Fiz como todas: brigando com ele mentalmente, engolfando-o entre os tentáculos de uma argumentação avassaladora, fui colocar roupa na máquina.

A cada meia, um xeque-mate; a cada camisa social, um mata-leão retirado diretamente dos manuais de retórica feminina.

O clímax da anedota veio quando, checando os bolsos de uma de suas calças, senti dois objetos pequenos – em verdade, minúsculos. Segure a respiração, leitor: nem previsíveis moedas, nem isqueiros proibidos, eram apenas um bago de feijão cru e um pedacinho de plástico partido.

Não levei, para compreender, nenhum segundo a mais do que para ver. Não eram objetos aleatórios, eram, sim, fragmentos do nosso cotidiano, carregados de significado.

Pude vê-lo ali, dando conta das três crianças, enquanto eu lidava com o mundo explodindo dentro da tela do meu computador; pude vê-lo distraindo os mais velhos com uma das mãos, enquanto a outra catava do chão as miudezas que colocam em risco a vida da bebê.

O feijão e o plástico eram aquele meu marido explosivo e afogueado protegendo a vida da nossa bebê.

Fui, de súbito, desarmada por aquele pescotapa inteiramente imprevisto. À noite, durante o jantar, já estava mais mansa – o que consegui a custo disfarçar.

E no dia seguinte permiti que ele me pedisse desculpas.

Ele

“O que mais te encanta nela?”, perguntaram. “O cuidado que ela tem com os nossos filhos”, foi a resposta, contrariando as minhas mais automáticas expectativas.

Engoli seco, redobrada a consciência da minha responsabilidade. E me pus a pensar no peso dessa pequena palavra: cuidado…

Me veio ao coração uma memória do nosso primeiro mês de namoro: ele se ofereceu para passar as noites no hospital com o avô doente. Ninguém lhe pedira, e na fila de convocados estava longe de ser o primeiro, entre tantos filhos e tantos outros netos. O próprio avô já estava inconsciente havia meses.

Ele saía do trabalho e ia dormir numa cadeira ao lado do leito hospitalar. Foi dali que, numa manhã, fez-se presente no momento em que o avô partiu. Cumpriu sua missão sem alarde, sereno.

Eu, que acabara de conhecê-lo, fiz memória daquele fato, que depois se desdobraria em tantos outros ao longo da nossa vida conjugal. Ali estava um homem disposto a cuidar e a sacrificar-se. Filha de mãe solteira, eu desconhecia o que fosse aquilo.

Jamais me faltaram pretendentes, embora todos buscassem antes a carcaça literária que, não tem jeito, me coube arrastar por essa vida. Não estavam dispostos – era óbvio – a descobrir a lesma fria e pegajosa sob a couraça dos textos, das ideias e dos livros. E não tardariam a queimá-la com o sal do desprezo…

Já ele, desde o início, me obrigou à apresentação mais desarmada. Sobreviveu, impávido, às minhas lágrimas e cenas; sempre demonstrou o mais amoroso orgulho dos meus poemas e foi, com simplicidade, jamais com afetação, meu comparsa nas ideias.

Eu cuido dos filhos dele como quem, para viver, respira. Ele me ensina a cada dia que a entrega por amor é a maior das alegrias.

Servir, morrer, servir

I

Segura a minha mão, porque é revolta
essa água sem razão que nos transborda;
aziaga, vem de dentro, ou vem de fora,
clarão de tempestade ardendo à solta,
que sem se demorar já nos devora.

Quiséramos beber de uma água limpa,
orvalho entre a neblina quando a aurora
permite à luz que dance e frutifique.
Mas a sede que temos nos afoga
e a cada novo dia a fome assiste.

II

Deixar vir um querer todo diverso
deste, que ora cobiça, ora adereço,
vai dar no coração do precipício:
desejar febrilmente o pó. Desejo
plantado numa fome sem raízes
e em vão multiplicado, em vão crescendo,
porquanto ensimesmado, estéril e triste.

III

Servir como entender que o que persiste
quando a torrente em fúria nos afoga
é a gota de suor fresca, invisível,
e a lágrima sem dor que se evapora,
trazendo o amor à escura superfície.

Servir de olhos abertos, sem alarde,
com os lábios secos, mudos, porém ávidos,
servir com a concha mouca dos ouvidos
buscando discernir, entre alaridos,
qual forma há de servir que desagrave

a escravidão mundana aos vis sentidos.

IV

Servir, morrer, servir; ser lírio ou ave
nos campos em que a fome não fecunda
a planta traiçoeira dos cuidados –
a cada dia um mal, somente, e a busca
é abrir-se a receber os bens mais altos,
aqueles de que a Graça não descuida.

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L.M.C., 2017

Para o meu clã

— Num romance de moldes tolstoianos, vocês são o casal «fugere urbem», que corta todos os vínculos com o sistema social para cultivar a liberdade do espírito nas montanhas, enquanto nós ficamos aqui, atados à selva de pedra, lutando contra dragões que no máximo tomam a forma de chefes ou de parentes.

Mais de uma vez falei assim à minha comadre (tenho outras, mas ela é a primeira em ordem cronológica). A vida imita a arte, dizemos, embora seja apenas um limitadíssimo chiste.

Jamais teremos a visão completa do intrincado sistema de protagonismos com que Deus compõe o Grande Enredo da vida humana. E é decerto mais feliz e mais serena a trajetória daquele herói que não precisa desgastar-se pesando seu próprio papel em referência aos de seus pares.

(Minha memória animal, nesse momento, traz à tona as mônadas de Leibniz; por sorte, livra-me do risco de tentar compor um pensamento a lembrança mais substantiva das conversas universitárias com minha comadre.)

Era uma vez um erudito — o último de sua espécie, aqui nas terras de Banânia. Nadou a braçadas na poesia de todos os tempos, respondeu aos grandes, foi chorar pitangas à matemática. Enquanto isso, o rapaz magro, de semblante insuportavelmente triste, enxergava com os olhos da moça cega. Tirou o país do analfabetismo: sua fala pausada perturbava o sono de muitos, que ao fim e ao cabo acordaram. Por sua vez, o filho de hippies, que empreendeu desde o próprio quarto adolescente e tornou-se magnata da tecnologia, protagonizou enredo sobre procurar o amor (e achá-lo). Até que, numa nota mais mística, conferindo à obra um acabamento em tom de mistério, surge a moça a quem Deus deu todos os dons: inteligência, virtude, beleza. Espécie de sacerdotisa?

O moço loiro se casou comigo, que talvez nem tenha entrado na história. O poeta segue sempre à margem, escondendo seus cancros sob piruetas e notas de cítara. Não deixa de ser uma posição confortável.

Meus amigos vieram de muito longe: não bastam anos para medir a distância que percorremos. Juntos, apartados; necessariamente solitários. Vou terminar o texto, antes que não resista e use para metáfora as mônadas de Leibniz.

Dia dos pais

Minha vida não precisava ter sido. Por algum tempo, e em incontáveis momentos pontuais, quem olhasse de fora talvez pensasse: não precisava.

Enquanto era só, eu lutava por manter a cabeça para fora do meu mar de defeitos. Hoje, embora continuem sendo muitos, são já os defeitos de quem nada rumo à praia.

Amar um homem que me deu filhos, amar estes filhos até a loucura, varrer o chão que eles pisam, cozinhar o doce que perfuma a casa todas as tardes — embora a minha vida não precisasse, realmente, ter sido.

Só foi por Graça, como todas.

Sobrevivi à custa de muito Anjo da Guarda.

E respondi a quem duvidava da necessidade da minha existência gerando esses outros que são carne da minha carne.

A eles, a mesa posta, a oração em família, o pai dirigindo o carro, o Amor com letra maiúscula, o saudável exemplo dos sexos complementares.

Por eles, fazemos festa em todas as datas comemorativas. Para que saibam que, como um relógio encantado, a vida respeita a uma constância que não permite retornos; que todas as coisas têm nome e as marcas que deixamos secam mares e cavam abismos.

E sobretudo para que se reconheçam, desde o primeiro instante, necessários: perfeitamente integrados à ordem e ao propósito da nossa vida em família — e do mundo que nos circunda.