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O feijão e o plástico

Esses dias, briguei com meu marido (e ele comigo). Tivemos dessas discussões repletas de silêncios e meias palavras, de que, no entanto, saem ambas as partes cheias de mágoas profundas.

Fomos dormir brigados e, no dia seguinte, como não podia deixar de ser, mantive meu silêncio de túmulo. Calar é meu movimento involuntário nessas ocasiões; é mais fácil do que lidar com o problema e permite, à mulher injustiçada, saborear mais intensamente a raiva e a autocomiseração.

Fiz como todas: brigando com ele mentalmente, engolfando-o entre os tentáculos de uma argumentação avassaladora, fui colocar roupa na máquina.

A cada meia, um xeque-mate; a cada camisa social, um mata-leão retirado diretamente dos manuais de retórica feminina.

O clímax da anedota veio quando, checando os bolsos de uma de suas calças, senti dois objetos pequenos – em verdade, minúsculos. Segure a respiração, leitor: nem previsíveis moedas, nem isqueiros proibidos, eram apenas um bago de feijão cru e um pedacinho de plástico partido.

Não levei, para compreender, nenhum segundo a mais do que para ver. Não eram objetos aleatórios, eram, sim, fragmentos do nosso cotidiano, carregados de significado.

Pude vê-lo ali, dando conta das três crianças, enquanto eu lidava com o mundo explodindo dentro da tela do meu computador; pude vê-lo distraindo os mais velhos com uma das mãos, enquanto a outra catava do chão as miudezas que colocam em risco a vida da bebê.

O feijão e o plástico eram aquele meu marido explosivo e afogueado protegendo a vida da nossa bebê.

Fui, de súbito, desarmada por aquele pescotapa inteiramente imprevisto. À noite, durante o jantar, já estava mais mansa – o que consegui a custo disfarçar.

E no dia seguinte permiti que ele me pedisse desculpas.

Ele

“O que mais te encanta nela?”, perguntaram. “O cuidado que ela tem com os nossos filhos”, foi a resposta, contrariando as minhas mais automáticas expectativas.

Engoli seco, redobrada a consciência da minha responsabilidade. E me pus a pensar no peso dessa pequena palavra: cuidado…

Me veio ao coração uma memória do nosso primeiro mês de namoro: ele se ofereceu para passar as noites no hospital com o avô doente. Ninguém lhe pedira, e na fila de convocados estava longe de ser o primeiro, entre tantos filhos e tantos outros netos. O próprio avô já estava inconsciente havia meses.

Ele saía do trabalho e ia dormir numa cadeira ao lado do leito hospitalar. Foi dali que, numa manhã, fez-se presente no momento em que o avô partiu. Cumpriu sua missão sem alarde, sereno.

Eu, que acabara de conhecê-lo, fiz memória daquele fato, que depois se desdobraria em tantos outros ao longo da nossa vida conjugal. Ali estava um homem disposto a cuidar e a sacrificar-se. Filha de mãe solteira, eu desconhecia o que fosse aquilo.

Jamais me faltaram pretendentes, embora todos buscassem antes a carcaça literária que, não tem jeito, me coube arrastar por essa vida. Não estavam dispostos – era óbvio – a descobrir a lesma fria e pegajosa sob a couraça dos textos, das ideias e dos livros. E não tardariam a queimá-la com o sal do desprezo…

Já ele, desde o início, me obrigou à apresentação mais desarmada. Sobreviveu, impávido, às minhas lágrimas e cenas; sempre demonstrou o mais amoroso orgulho dos meus poemas e foi, com simplicidade, jamais com afetação, meu comparsa nas ideias.

Eu cuido dos filhos dele como quem, para viver, respira. Ele me ensina a cada dia que a entrega por amor é a maior das alegrias.

Servir, morrer, servir

I

Segura a minha mão, porque é revolta
essa água sem razão que nos transborda;
aziaga, vem de dentro, ou vem de fora,
clarão de tempestade ardendo à solta,
que sem se demorar já nos devora.

Quiséramos beber de uma água limpa,
orvalho entre a neblina quando a aurora
permite à luz que dance e frutifique.
Mas a sede que temos nos afoga
e a cada novo dia a fome assiste.

II

Deixar vir um querer todo diverso
deste, que ora cobiça, ora adereço,
vai dar no coração do precipício:
desejar febrilmente o pó. Desejo
plantado numa fome sem raízes
e em vão multiplicado, em vão crescendo,
porquanto ensimesmado, estéril e triste.

III

Servir como entender que o que persiste
quando a torrente em fúria nos afoga
é a gota de suor fresca, invisível,
e a lágrima sem dor que se evapora,
trazendo o amor à escura superfície.

Servir de olhos abertos, sem alarde,
com os lábios secos, mudos, porém ávidos,
servir com a concha mouca dos ouvidos
buscando discernir, entre alaridos,
qual forma há de servir que desagrave

a escravidão mundana aos vis sentidos.

IV

Servir, morrer, servir; ser lírio ou ave
nos campos em que a fome não fecunda
a planta traiçoeira dos cuidados –
a cada dia um mal, somente, e a busca
é abrir-se a receber os bens mais altos,
aqueles de que a Graça não descuida.

____

L.M.C., 2017

Para o meu clã

— Num romance de moldes tolstoianos, vocês são o casal «fugere urbem», que corta todos os vínculos com o sistema social para cultivar a liberdade do espírito nas montanhas, enquanto nós ficamos aqui, atados à selva de pedra, lutando contra dragões que no máximo tomam a forma de chefes ou de parentes.

Mais de uma vez falei assim à minha comadre (tenho outras, mas ela é a primeira em ordem cronológica). A vida imita a arte, dizemos, embora seja apenas um limitadíssimo chiste.

Jamais teremos a visão completa do intrincado sistema de protagonismos com que Deus compõe o Grande Enredo da vida humana. E é decerto mais feliz e mais serena a trajetória daquele herói que não precisa desgastar-se pesando seu próprio papel em referência aos de seus pares.

(Minha memória animal, nesse momento, traz à tona as mônadas de Leibniz; por sorte, livra-me do risco de tentar compor um pensamento a lembrança mais substantiva das conversas universitárias com minha comadre.)

Era uma vez um erudito — o último de sua espécie, aqui nas terras de Banânia. Nadou a braçadas na poesia de todos os tempos, respondeu aos grandes, foi chorar pitangas à matemática. Enquanto isso, o rapaz magro, de semblante insuportavelmente triste, enxergava com os olhos da moça cega. Tirou o país do analfabetismo: sua fala pausada perturbava o sono de muitos, que ao fim e ao cabo acordaram. Por sua vez, o filho de hippies, que empreendeu desde o próprio quarto adolescente e tornou-se magnata da tecnologia, protagonizou enredo sobre procurar o amor (e achá-lo). Até que, numa nota mais mística, conferindo à obra um acabamento em tom de mistério, surge a moça a quem Deus deu todos os dons: inteligência, virtude, beleza. Espécie de sacerdotisa?

O moço loiro se casou comigo, que talvez nem tenha entrado na história. O poeta segue sempre à margem, escondendo seus cancros sob piruetas e notas de cítara. Não deixa de ser uma posição confortável.

Meus amigos vieram de muito longe: não bastam anos para medir a distância que percorremos. Juntos, apartados; necessariamente solitários. Vou terminar o texto, antes que não resista e use para metáfora as mônadas de Leibniz.

Dia dos pais

Minha vida não precisava ter sido. Por algum tempo, e em incontáveis momentos pontuais, quem olhasse de fora talvez pensasse: não precisava.

Enquanto era só, eu lutava por manter a cabeça para fora do meu mar de defeitos. Hoje, embora continuem sendo muitos, são já os defeitos de quem nada rumo à praia.

Amar um homem que me deu filhos, amar estes filhos até a loucura, varrer o chão que eles pisam, cozinhar o doce que perfuma a casa todas as tardes — embora a minha vida não precisasse, realmente, ter sido.

Só foi por Graça, como todas.

Sobrevivi à custa de muito Anjo da Guarda.

E respondi a quem duvidava da necessidade da minha existência gerando esses outros que são carne da minha carne.

A eles, a mesa posta, a oração em família, o pai dirigindo o carro, o Amor com letra maiúscula, o saudável exemplo dos sexos complementares.

Por eles, fazemos festa em todas as datas comemorativas. Para que saibam que, como um relógio encantado, a vida respeita a uma constância que não permite retornos; que todas as coisas têm nome e as marcas que deixamos secam mares e cavam abismos.

E sobretudo para que se reconheçam, desde o primeiro instante, necessários: perfeitamente integrados à ordem e ao propósito da nossa vida em família — e do mundo que nos circunda.

Noturno sobre livre arbítrio

The art of losing is not hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster…

— Elizabeth Bishop, em poema traduzido por Bruno Tolentino
em O Mundo Como Ideia

*
Busco entender, Bruno, à luz desses versos
que tu citaste em paráfrase alheia,
algo da morte. Eu já rezei três terços

tentando clarear minhas ideias,
mas essa noite é maior do que eu,
ela circula pelas minhas veias

junto aos teus versos. Pelo amor de Deus,
Bruno, me diz se as coisas são fadadas
ao destino que as afinal perdeu,

se o que foi perda nascera cilada
como o que esplende é destinado ao brilho;
me diz, Bruno, se a liberdade é dada

integralmente ou num vago caminho,
se o já nascer com natureza é sina
intransponível, ou se vai do estilo

que ir vivendo aos poucos nos ensina.
Eu, por exemplo, nesta madrugada:
penso na voz rouca que me destina

tão sutilmente a me entregar ao nada,
ou ao infinito – como vou saber? –,
mas o exercício mental me embriaga

mais que esclarece. O que meu corpo quer
(dormir, sorver ar puro) é rejeitado
pela proposta maior que é viver

dentro dessa espiral, desse quadrado:
vou lendo os versos que o Bruno escreveu,
esse meu esquisito antepassado,

e dando o tom que essa noite me deu
ao poeminha idiota que, depois,
far-me-á vergonha apenas por ser meu.

Um rol de mortes terríveis, atroz
em sua óbvia futilidade,
me vem à mente e se procuro o algoz,

a mão capaz de mover tudo que arde,
encontro um novelo malsão de culpas
e nenhuma ao final. Então me invade

o tipo de revolta mais estúpida:
por que, meu Deus, além da dor da vida
de quem viveu incapaz de uma súplica,

por que – alguém, por bondoso, me diga! –
depois de terem vivido no inferno
esses coitados que a vida fustiga

ainda têm de ir parar no Inferno,
pois, loucos, se atiraram da janela?
“Todos existem livres. Sempiterno

e onipresente é o brilho dessa Estrela,
o amor do Pai. Quem incapaz de vê-la
cegou-se livremente, porquanto Ela

não cessa de brilhar jamais.” A pena,
então, me cai dos dedos, choraminga:
“Ó, Pai, não logro a certeza serena

de que, nesse presente mundo, à míngua
de tudo o mais basicamente humano,
basta-nos ter boa vontade – a língua

de Deus fala por todos… Mas o engano
às vezes, tudo indica, fala mais.
Há quem nasça fadado ao desengano,

é o que parece – há um algo que induz
as almas ao abismo sem que elas
tenham lá grandes chances. E, ao invés,

existem as que se salvam quando nelas
qualquer coisa de fora as inverteu,
movendo-as como a chama de uma vela

ilumina ao redor. Quem compreendeu
o drama viu que há sinas discrepantes,
e é assim que eu me pergunto por que eu,

meu Deus, fui ver essa luz causticante
e salvadora, em vez de um outro irmão;
quem quer que fosse, desde que diante

do bem que eu vi, nunca ousaria o ‘não’.
Se é tudo uma questão de Graça, ó Pai,
ou falta dela, então o Inferno é vão.”

Há coisas que, se o dom da perda esvai,
– diz lá a Bishop, apud Tolentino –
é porque existe um dom da perda. Mais

ainda, têm “perder” no seu destino.
Isso se aplica à vida? Os suicidas
perdem-se em nome de um desatino

atinado, glosando o que as feridas
da perda ofereceram como mote?
Pergunto se essa força que os instiga

coincide com seu fado, com sua sorte,
ou qualquer desses termos sorrateiros
que denominam o que precede a morte.

Há a força propulsora, o derradeiro
pendor, algo assim como um dom da perda?
Existem dons? Se sim, o desespero

do suicida que a loucura verga
para além da janela não é só dele.
Donde, não é tão livre como prega

a grã filosofia em que se espelhe
nosso mundo mental; o determina
(ao suicida) algo que, em vez, o acolhe,

dá-lhe a beber do leite da má sina.
Não sei se estou conseguindo explicar
(ainda mais tentando-o em terça rima)

o que essa madrugada – a insônia, o ar
dessa noite maligna – me incutiu.
Tem a ver com liberdade, com causar-

mos realmente o que nos sucedeu.
Sei quanto o livre-arbítrio é ideia cara,
mas sei também que a mim a Graça encheu

do que eu não merecia – a minha cara
de espanto, gratidão e de temor
é testemunha. Essa dádiva rara

por que não colhe a todos, pleno amor?
___
(2011-2015)