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“Angústia”, de Graciliano Ramos, à luz de Dostoiévski

Li Angústia pela primeira vez há 11 anos. Guardava dele uma impressão tão forte que logo se fez em opinião inabalável: obra de arte finíssima, produto da pena de um mestre.

Reli-o recentemente. Seguem alguns apontamentos que vieram à tona da releitura:

  1. Dostoiévski. Entre a leitora que sou hoje e a que era há 11 anos, aconteceu Dostoiévski. Poderia, sim, ser o olhar viciado de quem se habituou a ler até receita de bolo pelo prisma russo, mas nesse caso não é, não. Angústia é um romance de matriz escrita e escarradamente dostoievskiana – e uma pesquisa rápida na rede revela que já há tantos doutorados sobre o assunto, que se trata praticamente da redescoberta da roda. O buraco é mais embaixo, porém.
  1. Híbrido de Notas do Subterrâneo e Crime e Castigo, não tanto pelo enredo, mas sobretudo pelo perfil psicológico do herói, Angústia nasce das entranhas de um “homem cindido”, um Raskólnikov, meio intelectual, meio homem do povo, cuja inadequação social o transforma em espécie de homem-bomba, capaz de destruir, num ímpeto de loucura, aquele que representa todo o mal que o oprime – não apenas a si próprio, mas aos seus semelhantes. A velha usurária, em Crime e Castigo, e Julião Tavares, em Angústia, não são pessoas, são símbolos, são representantes vivos da peste social que, segundo seus assassinos, corrompe os fracos e abusa dos pobres.
  1. Sim, há bastantes doutorados sobre tudo isso, pois as semelhanças não têm fim. O orgulho, a vaidade, a dignidade ferida do herói fisicamente débil, no qual a vocação intelectual se choca com a ancestralidade popular, selvagem, “pé no chão”; a pobreza excruciante, que faz ferver ainda mais o sangue antigo, clamando por justiça, por atividade, assim levando ao desespero o homem quieto, diminuto, habitualmente confinado à reflexão; e por fim a afeição genuína – amor, diga-se – a alguns dos seres mais vulneráveis ao mal representado por aquele que o herói, como que involuntariamente, percebe que precisa eliminar. Tem-se a receita da tragédia moderna que Dostoiévski legou ao mundo e Graciliano Ramos tomou de empréstimo para construir seu próprio edifício de altíssima literatura.
  1. Com uma diferença fundamental, e eis o ponto que talvez não ganhe tanta atenção nos doutorados: em Dostoiévski o homem do subsolo, ou homem cindido, é concebido como uma figura negativa, que tem lá seu verniz de interessante rebeldia, de selvageria fascinante, mas é proposto pelo autor como amálgama das contradições que a Rússia precisava urgentemente resolver. Raskólnikov era o produto nefasto da Rússia apartada do solo, do povo, da cristandade ortodoxa; era no que se transformava a juventude que trocara o Cristo russo pelos Prometeus do Ocidente.
  1. Já Luís da Silva, o “Zé Ninguém” de Graciliano Ramos, é a face neutra da miséria brasileira; e o autor o abraça até o fim e despenca com ele dentro do abismo do ceticismo e do crime justificado. Não há hesitação da parte de Graciliano: Julião Tavares merecia morrer, sim; quem ousaria dizer que não? O porco capitalista, açougueiro a ceifar a inocência de moças pobres, mentiroso, canalha — já foi tarde.  E, conseguintemente, mal não fez Marina ao matar o filho que ele lhe enfiara à força no ventre.
  1. Graciliano Ramos e Dostoiévski são ambos filhos da modernidade, da revolta e do ceticismo. Conheceram de perto a miséria e o cárcere, de onde ergueram as mãos em súplica a um céu nebuloso. Cada qual, no entanto, saiu da experiência com seu quinhão de verdades — e aí seus caminhos divergem. Graciliano disse em algum lugar que seu livro favorito era a Bíblia. Lia-a, porém, como interessantíssima ficção, ele próprio um homem cindido segundo o modelo de Dostoiévski. Se o suor e o sangue de seus ancestrais eram a própria seiva que o nutria, os altares diante dos quais prostravam-se seus pais e avós lhe eram indiferentes. Apartado do solo, do povo, indo roubar o fogo dos céus com os Prometeus do cânon literário, Graciliano Ramos mata sem pesar. Sofre, mas não se arrepende.
  1. Produziu uma obra de arte finíssima, produto da pena de um mestre. Angústia é literatura para se ler saboreando, malgrado o travo que deixa na boca. As personagens têm vida, as palavras dançam na página com precisão milimétrica. É um balé. Trágico, deprimente até, mas, a seu modo, belo.
  1. Imoral, porém; sem dúvida. É preciso ter maturidade para consumi-lo sem dano. Não o indicaria livremente a filhos e alunos. Como já o estão lendo por conta do vestibular, resta acompanhá-los e instruir-lhes a leitura.

Consagração

“Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria.” (S. Luís Maria G. de Montfort)

*

Como não sei, Senhora, erguer-me além de mim,
e o que sou me encaminha a um mísero porvir;

como trilhar sozinha o labirinto horrendo
de cada dia é atalho a terminar perdendo

o fio da meada, como o já perdi
seguidas vezes; como hei de ceder, enfim,

ao pesadelo, se não me livrar de mim,
entrego-me, Senhora, inteira aos pés de ti:

o que tenho, o que sou, o que faço, este canto,
tudo depositado sob o casto manto,

para que tu defendas contra o mal da morte
e da aniquilação. Teu poderoso norte

ostenta sobre a nossa procissão de cruzes
a luz esperançosa com que tu conduzes

as almas mais penosas à conciliação
com a verdade encarnada no teu Coração.

Serás Senhora minha, e eu, se tua escrava
souber – ventura minha! – ser, livre das garras

do mundo em mim, Senhora, então serei feliz
como o só é quem já não é mero aprendiz

da anatomia de teu seio lacerado,
dor que alivias na dureza de teu fardo,

tu que doendo sabes transcender a dor,
compadecendo-te de toda dor maior

(como se houvesse alguma comparável à tua;
nem à Dele, talvez – que Ele era Deus e tu uma

frágil mulher, calada sempre, e torturada).
Senhora minha, dou-te algumas poucas lágrimas

com que aliviares os pesares do jardim
do mundo, que te espera, às voltas com seu fim.

Bem sei que não mereço interagir com a Graça,
mas cega entrego-te tudo o que, em teu regaço.

pode alcançar a altura do amor de teu Filho,
Ele o Rei Redentor, a Verdade e o Caminho.

Intercede por nós, Senhora, medianeira,
empresta-nos tua luz, para que se pareça

nossa infinita pequenez com tua realeza
e o Pai tenha misericórdia e o Filho esqueça

nossa impostura diante de tua casta imagem.
Em ti, Senhora, todos os nós se desfazem;

conciliadora, tu reúnes sob o facho
de luz de teus olhos maternos nossos passos

e pacificas mesmo o que não se alivia,
como a dor que arde em ti. Pois eis-me aqui; envia-me.

Maternidade: semeando memórias

Esses dias o Ícaro escreveu um baita texto (*), que me fez mergulhar num mar de memórias.

As viagens para a praia nas férias, a primalhada toda, quatro ou cinco crianças apertadas no banco traseiro do carro (na época em que ainda não estava em voga a paranóia das cadeirinhas), areia pelo chão, restos de comida, risadas, brigas. Sempre tinha café com leite e sanduichinhos para comer durante a viagem. Depois, os almoços praianos — peixe, camarão, caranguejo –, cujo gosto se mistura, na minha memória, ao da água de coco fresca e ao cheiro do Sundown…

Era uma delícia. São algumas das minhas melhores lembranças.

E na época tudo parecia fácil, gratuito, natural… Mas não era. Devo os melhores dias da minha infância ao trabalho de outras pessoas.

Os sanduíches não brotavam espontaneamente da sacola de praia. Os almoços não se cozinhavam sozinhos. Hoje, rememorando aquelas cenas com olhos adultos, encontro sempre, no plano de fundo da algazarra das crianças, as silhuetas das minhas tias e mãe, suadas, descabeladas, construindo com as próprias mãos a nossa infância. O que para nós era divertimento e liberdade, para elas era preocupação, responsabilidades, cuidado.

Há uma fala do Pe. Paulo Ricardo na qual penso constantemente. Em um de seus programas, ele comentou o pedido que um seguidor lhe fez: “Padre, fale algo para as pessoas que não querem ter filhos! Diga a elas que essa é a maior alegria da vida!”. Já não recordo as palavras exatas que o Padre Paulo dirigiu ao rapaz, embora carregue seu sentido comigo o tempo inteiro. Ele disse: “Meu amigo, as pessoas devem ter filhos, sim, mas não porque seja algo prazeroso. Não é esse o motivo correto. As pessoas devem ter filhos simplesmente porque um dia alguém fez isso por elas.”

O trabalho é descomunal. Mesmo quando eles dormem, continuam sendo o centro das nossas preocupações. Quando adoecem, nosso mundo se desorganiza por completo, e não apenas do ponto de vista emocional, mas porque é preciso acordar 20 vezes durante a noite para lavar e aspirar o nariz do bebê, medir-lhe a febre e medicá-lo. Você não dorme, você fica lavada de vômito. E, quando o sol clareia lá fora, o dia quer você de pé.

Acho mesmo que virar a noite na cabeceira do filho doente é a experiência mais desarmante, mais moralmente instrutiva que pode haver. É a hora em que você joga as demandas do seu umbigo na lata do lixo. E jogar as demandas do próprio umbigo na lata do lixo é precisamente a definição de virar gente, isto é, amadurecer. Ter filhos não é o único meio para este fim, mas é sem dúvida um dos mais eficazes.

Eu fui uma criança muito doente. Minha mãe, sem marido e trabalhando de sol a sol, cuidou de mim com um amor incalculável. Os anos da minha infância segura e feliz foram, para ela, um período de luta e muito, muito trabalho.

Essa fase que vai dos 30 aos 60 anos, mais ou menos, é provavelmente a mais difícil da vida. É o momento de cuidar dos pequenos e também dos mais velhos, de quem recebemos o bastão da corrida enlouquecida pela sobrevivência no mundo humano. É estar na vanguarda da batalha; é a fase da vida cujo tema inescapável é a doação.

Servir. Fazer o mundo girar.

Precisei ser uma mãe casada para ter alguma dimensão do quanto foi difícil a vida da minha mãe solteira. Como ela deve ter sentido medo sob o peso enorme de seu fardo. E com que coragem ela seguiu adiante para me dar a oportunidade de existir e já ter gerado outras duas vidas, que são, tanto quanto eu, produtos de seu suor e suas lágrimas.

Depois dos filhos, muito do que era simples se torna complicado. Sair de casa é sempre uma odisséia. Viajar, nem se fala. Das tralhas intermináveis para empacotar à necessidade de correr atrás deles o tempo todo, o trabalho é, repito, descomunal. E é nessas horas que penso no Pe. Paulo: alguém fez isso por mim.

Meus filhos estão em plena fase de descobrimento do mundo; seu único dever, por ora, é viver e aprender como se vive — e o meu dever é servi-los. Estar na vanguarda da batalha é ir abrindo caminho para aqueles que vêm depois de nós, a quem devemos proteger e instruir, e nesse sentido é também estar no plano de fundo e ceder-lhes o protagonismo.

Alguém fez isso por mim. Sempre com um sorriso no rosto.

São dias agitados e difíceis, construídos com migalhas de esforços anônimos, que não recebem em retorno glitter nem confete, mas apenas sorrisos, carinhos e a promessa de permanência no tempo, nas próximas gerações.

Fazer o mundo girar: essa é a única revolução em que eu acredito.

(*) Texto do Ícaro: https://www.facebook.com/icaro.decarvalho.7/posts/1576418225782226?pnref=story

(**) Quem não der a mínima para a minha opinião sobre esse assunto pode se contentar com a de Shakespeare: http://www.shakespeare-online.com/sonnets/1.html

Advento, 2017

“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou…”

“O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.”

Alberto Caeiro, “O Guardador de Rebanhos”, poemas VI e XXX, respectivamente.

 

*

 

Estive relendo Alberto Caeiro, um dos poetas da minha adolescência; e dessa vez com mais interesse do que antes.

Em menina, uns quinze anos atrás, ele não era das minhas leituras mais intensas; nunca me demorei nos seus poemas, que por motivos então obscuros me pareciam “sem sal”. Meu favorito, no universo pessoano, sempre foi o ortônimo.

Hoje Caeiro me chama particularmente a atenção, e o leio com um misto de tédio e angústia, por reconhecer que ainda há muito do que ele diz sedimentado no que eu sou. E ao mesmo tempo percebo, com clareza renovada, que era mesmo inevitável que me tornasse cristã.

Querer a docilidade das plantas, mas não como uma entrega abnegada ao que tiver de ser e vir, antes como quem se fecha à possibilidade de sofrer: é isso, no fundo, o sensacionismo de Caeiro. O olhar de quem busca ver na flor somente a flor e no sol somente o sol, recusando obstinadamente reflexões e metáforas, é tão nítido quanto limitado. Reduzir a vida ao que nos chega de forma bruta pelos sentidos, ser apenas o que se é a cada momento, ir sendo, sem pensar, ir sendo…

Medo, um medo enorme de sofrer. Mas eu nunca entendi que se pudesse desejar a serenidade das pedras. Já na adolescência aquilo me parecia excessivamente morno e, em seu fundamento, irreal. Mesmo quando maravilhada pelo som e pelo ritmo tão envolventes daquelas palavras, era claro que estava diante de uma tentativa de fuga.

A filosofia de Caeiro é apenas um exemplo entre tantos de como os homens tentam driblar a dor por meio de racionalizações fajutas. E é inevitável que seja uma filosofia anti-cristã, pois a religião da cruz, antes de ser religião, antes de tornar-se credo, veio ao mundo justamente como a radicalização da dor: o Deus chagado, humilhado, crucificado, que levou ao extremo em sua própria carne todas as mágoas de que humanamente nos queixamos e nos deu testemunhar Sua Dor para nos ensinar a vivenciar a nossa.

Nunca será diferente: sempre vai doer. Em todos nós. De todos os modos possíveis. Essa é a realidade da experiência humana, e modificá-la não é uma questão de imitar a passividade das folhinhas trêmulas das árvores. Nem é o caso, na verdade, de “modificá-la”. Podemos alterar a fachada do edifício, mas os alicerces vão muito além de nossos pueris sensacionismos.

A única resposta razoável para o problema do mal é o Cristo, e está aí, à guisa de demonstração, a literatura de Dostoiévski. Os males que nos sucedem são fundamentalmente de dois tipos: os que nos acometem pessoalmente e os que acometem aqueles que amamos. Todas – repito: todas – as chagas da humanidade estão contempladas no sofrimento e morte de cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e na dor imensurável de sua Mãe Santíssima.

Sim, o papel de Maria na pedagogia da cruz é central. Quantas vezes nos sentimos feridos, não tanto em nossa integridade pessoal, mas em nosso senso de justiça, diante do mal feito a outrem? E quando esse outro é a pessoa que mais amamos no mundo – existe dor maior?

Jesus e Maria, juntos, nos dão a medida máxima da dor humana e nos mostram por que, e como, suportá-la. É uma lição dificílima, por mais didático que seja o exemplo. Mas está tudo aí – tudo aquilo de que Alberto Caeiro foge como se fosse o próprio diabo (e não é?); está tudo aí, para quem tiver olhos, não apenas os olhos da face, mas aqueles olhos metafóricos, produtos da maturação do espírito, que nos ajudam a tatear os caminhos misteriosos da Criação.

Deus quis, sim, que o conhecêssemos, e não apenas enquanto ente maravilhoso e inabarcável, mas de um modo que, para nós, haver Deus fizesse sentido… Ele Se nos mostrou tão perfeita e inegavelmente Deus – doendo, humanamente doendo – , que o único modo de não O ver desde então é fechar os olhos e “não pensar nisso”.

Essa reflexão meio críptica, meio literária, é meu modo de desejar um feliz Advento aos amigos, especialmente aos que se desejariam mortos por dentro como Alberto Caeiro, julgando haver nisso algum tipo de felicidade.

Que o Menino Jesus nasça no coração de cada um de nós e retifique nossos caminhos.