Texto originalmente publicado no Medium, em dezembro de 2016.
Em 2014, uma americana, ao descobrir que estava grávida de um bebê com síndrome de Down, ouviu do médico as seguintes palavras: “Vocês não precisam ser heróis. Você pode ter o bebê aqui, ele ficará confortável conosco, mas vocês não são obrigados a fazer nenhuma intervenção drástica, como uma cirurgia cardíaca.”
Traduzindo: se não tinha coragem de interromper a gravidez, a mãe poderia ter o bebê e deixá-lo no hospital, sem fazer as intervenções necessárias à sua sobrevivência — até que ele “naturalmente” morresse. A mãe daria à luz a criança e a deixaria quietinha num canto para morrer. Isso mesmo: http://www.huffingtonpost.com/entry/dear-doctor-you-got-down-syndrome-wrong_us_5803e2bce4b0f42ad3d263b4?timestamp=1476650592422
Ainda em 2014, um casal australiano conseguiu na justiça o direito de abortar seu bebê de 28 semanas uterinas após este ter sido diagnosticado com uma deformação na mão. Guardo esta história na memória desde que a li, mas confesso que antes de citá-la neste texto fui pesquisar mais a fundo para ver se não havia algum detalhe fundamental que eu ignorava. Preparem-se para emoções fortes (http://www.brisbanetimes.com.au/nsw/i-felt-i-had-been-abandoned-inconsistency-and-fear-surrounds-lateterm-abortion-20141121-11r83k):
“Mother-to-be Cindy was 23 weeks pregnant when the first indication there might be a problem with the foetus emerged. What followed was a two-month long nightmare (…) They say they are still haunted by the silence that filled the ultrasound room, when, more than six months pregnant, the scan confirmed their fears: their child was suffering from a deformity, one that would cripple its left hand.”
Um longo pesadelo de dois meses… O assombroso silêncio da sala de ultrassom… A confirmação daquilo que os pais mais temiam: a criança sofria de uma deformidade que aleijaria sua mão esquerda.
(Pausa para o leitor enxugar as lágrimas.)
“Eu não queria que meu filho fosse discriminado”, disse a mãe. “É um problema evidente, pois afeta os dedos, e acho que a criança teria uma vida muito difícil.”
“Para ser sincero, foi muito desumano”, disse Frank (o pai). “Nos diziam que nossa única opção era dar à luz um bebê que não queríamos que nascesse. Sentimo-nos esquecidos e abandonados em razão das incertezas políticas e jurídicas das leis sobre o aborto.” [Grifos meus.]
Respire fundo, leitor, e deixemos os comentários para mais tarde. Agora estamos em 2016, ano em que Hillary Clinton, em plena campanha presidencial americana, declarou ser a favor do aborto até o nono mês de gestação. Vale notar que, em se tratando de um contexto eleitoral, ela não afirmaria um posicionamento que fosse extremamente polêmico — isto é, se não soubesse que a sociedade americana já está pronta para esse tipo de proposta.
Brasil, ainda o longo ano de 2016: o Supremo Tribunal Federal julga que não é crime abortar bebês de até três meses uterinos. Nenhuma multidão indignada toma as ruas; ao invés, uma horda de adolescentes tardios pergunta-se, via redes sociais, por que se indignam uns gatos pingados contra um parecer jurídico a favor das mulheres pobres, sem condições psicológicas ou materiais de ter um filho, que optam pelo aborto. Os abortos clandestinos acontecem; as mulheres morrem; é preciso garantir-lhes o direito de abortar em paz.
Brasil, ano de 2035. O senso comum já aceita perfeitamente a lógica de que “transei e engravidei, mas não queria = aborto”. Mais da metade das gravidezes são interrompidas logo no início, porém, como nada é perfeito, há também aquelas que se descobrem um pouco mais tarde e não são exatamente bem-vindas. E há também, é claro, as que eram desejadas de início, mas deixam de ser quando se descobre que o bebê em gestação não coincide com o bebê idealizado pelos pais. Só que a lei é obsoleta, de 20 anos atrás! Só permite o aborto até o terceiro mês. Absurdo. Todo mundo sabe que quem quer abortar com seis ou sete vai lá e aborta, mas as mulheres sofrem danos emocionais por ter de agir fora da lei — é uma violência contra a mulher! Aborto sempre, a qualquer hora!
Fim do discurso indireto livre, leitor, vamos falar claro: é de uma ingenuidade paquidérmica ignorar que o que vemos hoje, no Brasil, é a ponta de um iceberg que lá no “Primeiro Mundo” já está até bastante visível. Vocês caem como patinhos na conversa de que aborto é para os pobres e de que algum ideólogo abortista realmente se importa com a definição científica do início da vida. Não, cara classe média brasileira, bem intencionada e de bom coração, o aborto não é só nem principalmente para os pobres, é para todos e inclusive para você — você que nem desconfia do quanto já está enraizada no seu coração a semente do desprezo pela vida humana.
O que vemos em curso é um programa de dessensibilização dos mais violentos e infecciosos; a pessoa que hoje aceita a morte do feto de três meses não demorará a aceitar a morte do de seis e, com uma pitadinha a mais de retórica desumanizante, aceitará a morte do de nove, talvez com um nó na garganta, mas aceitará; pois “segundo a ciência, não são pessoas”. (“Argumentos científicos” são aquilo de que se valem os ideólogos quando querem que você se convença de algo sem ter de pensar a respeito.)
Eu sei, classe média brasileira, que a ideia de dar à luz um bebê e deixá-lo sozinho para morrer lhe causa asco; você seria capaz de levar para sua própria casa um bebê abandonado de modo tão cruel, tamanha a sua compaixão pelo outro. É justamente por isso que me desespera ver você dar a mão a gente que não vai descansar enquanto não macular essa sua bondade essencial. Se você de bom grado permite que suas mãos se sujem do sangue de fetos minúsculos, não se engane: acabará banhando-as no sangue de recém-nascidos, de pequenos bebês deficientes, de idosos já não tão lúcidos… A lista é potencialmente infinita! Essa é a cultura que você está abraçando. O lobby abortista NÃO VAI PARAR, não interessa o tempo de gestação ou quando é o tal do início da vida. (Spoiler: é na concepção.)
Entendeu? Você não é como essas pessoas. Mas está prestes a se tornar uma delas.