Sobre gratidão e hospitais

Nota publicada originalmente no Facebook.

1. Seria necessário viver algumas vidas para conseguir agradecer o suficiente a todas as pessoas que têm nos apoiado em nossa jornada com a Maria. Eu vinha me preparando para esse momento desde a vigésima semana de gestação, e no entanto para certas coisas nenhuma preparação é suficiente. Digo sem hesitar que não passei por esse momento: fui carregada. Fomos rodeados por uma corrente de amor, fé e esperança tão grande, que certamente há pouco mérito meu em ter vencido essa batalha. Ainda estou zonza devido ao turbilhão dos últimos dias; tudo o que sei é que, nesse exato momento, parafraseando aquela música, metade do meu coração é gratidão e a outra metade também. TODAS as pessoas que rezaram pela Maria ou simplesmente se solidarizaram e nos deram força terão meu amor e minhas orações PARA SEMPRE. Posso não lembrar ou saber de todas, mas Nossa Senhora sabe.

2. Fico pensando no quão superficial é a ideia, propagada desde os contos de fada até o folhetim popular, de que o auge da vida de uma pessoa está em encontrar sua cara-metade e se casar com ela. Bitch, please! A vida começa depois do casamento. Filhos trazem problemas, atrapalham a vida do casal, enrijecem a rotina, etc etc? Espero não ofender ninguém com o que vou dizer, mas me parece que filhos atrapalham uniões de corpos, não casamentos. E digo isso porque me recuso a aceitar que sou uma exceção. Porque, nesse exato momento, completamente exaustos pelo perrengue que passamos, Vitor e eu somos mais do que nunca um só. O amor explodiu qualquer escala, se fixou lá onde morrem as estrelas, sem início, sem fim. Se me perguntassem agora qual meu maior desejo, seria poder ter a certeza de viver mais uns 50 ou 60 anos da vida que vivemos hoje, eu e ele, juntos.

3. Hospitais são lugares tenebrosos, embora, talvez por isso mesmo, interessantes. O mesmo vale para os médicos. Cresci em admiração por eles tanto quanto em antipatia. É a profissão mais difícil que um ser humano pode ter, sem dúvida. Eles vivem em um ambiente inóspito, contaminado, em contato incessante com todos os graus possíveis de sofrimento humano. E minha hipótese é que por esse mesmo motivo precisam se tornar um pouco — ou até bastante — frios. Não é de admirar: para a pessoa conseguir acordar de manhã, escovar os dentes e ir para o trabalho abrir o peito de um bebê, tem de desligar alguns transmissores emocionais. Eu entrei com a Maria no centro cirúrgico e fiquei com ela na sala de cirurgia até ela ser anestesiada. Aquilo é como um ambiente paralelo ao mundo humano. Não dá para viver ali todos os dias e se manter ao mesmo tempo são e afetivamente íntegro — sinceramente, não dá. Justifica-se, portanto, a espécie de frieza que emana dos cirurgiões. O que continuo esperando ansiosamente é uma boa explicação para a frieza dos clínicos.

4. O único momento em que me senti verdadeiramente desrespeitada dentro do hospital foi quando fomos fazer o ecocardiograma pós-cirúrgico da Maria. Era o exame que determinaria o sucesso da cirurgia, e por isso estávamos todos aflitos pelo resultado. A Maria foi atendida por duas médicas aparentando uns trinta anos, que começaram a examiná-la da seguinte maneira: “Você sabe onde marca isso aqui?” “Não tenho certeza, põe em azul. Mais pra baixo.” “Tem uma CIV aqui.” “É…” “Você acha que é?” Pára tudo. CIV é um buraco no coração. Dependendo das dimensões, seria um grande problema. E aquelas duas mulheres estavam ali, passando uma maquininha sobre o peito costurado do meu bebê como quem brincasse de videogame! Enquanto eu me organizava mentalmente para interromper aquela situação, a entrada de um terceiro médico na sala esclareceu que aquelas eram duas residentes e que o exame ainda seria todo refeito pelo médico chefe, o qual então passou mais de uma hora dando aula para elas sobre o coração da Maria (que nesse tempo todo chorou, riu, brincou, chorou… quem é mãe sabe). Era como se eu não estivesse na sala. Era como se eu não estivesse internada num hospital há dias com meu bebê recém-operado, sem dormir, comendo mal, querendo apenas o resultado daquele exame. E, é claro, era como se a Mariazinha não estivesse ali, com as dores de um pós-operatório! Essa é a frieza a que me referia.

5. Tios, primos, amigos, conhecidos médicos: não façam nunca nada parecido com a cena acima. Se presenciarem algo semelhante, combatam, façam a diferença. A única coisa mais difícil do que a profissão de vocês é a vida de quem está trancafiado num hospital, dependendo de uma palavra de vocês para renovar ou perder a esperança.

6. Uma UTI cardiológica pediátrica consiste em vários bercinhos um ao lado do outro, cada qual ligado aos seus respectivos aparelhos. Dentro deles, em sua maioria, bebês recém-nascidos, operados logo após o nascimento. Mal se pode vê-los sob a parafernália médica. Ao lado dos bercinhos, mães de ar cansado que ora conversam com seus bebês, ora cantam, ora apenas olham para o vazio. É como se esse fosse um submundo que passa despercebido diante da felicidade dos nascimentos perfeitos. Eu era, dali, a mãe mais felizarda, com meu bebê gordinho com alta prevista para logo. Imagino como deve ser difícil colocar um bebê no mundo e, ao invés de aconchegá-lo no colo, só conhecê-lo sob fios e tubos. Peço que rezem por essas mães!

7. Aposto um dente da frente como quem lê tudo isso pensa: “Que bela história de superação! Que bom que não aconteceu comigo…” Eu também não sei se sou capaz de dizer que escolheria passar por tudo isso, mas digo o seguinte: quando soubemos que a Maria exigiria mais e mais sérios cuidados do que o normal das crianças, minha reação foi a mais comum: o que vai ser da minha vida? Você se imagina escravizado por essa nova e obscura realidade que está para chegar. Até que ela, a realidade, chega na forma de um bebezinho. E aí, parceiro… Acredite quando digo que a pergunta deixa de ser sobre a sua vida e passa a ser: como farei para que essa pessoinha viva bem? Para que não sofra? Qual braço eu preciso arrancar para que isso aconteça? É a velha noção da cruz sem cruz. O amor é tanto que o sacrifício não dói. O que dói é ver o sofrimento do filho e não haver sangue no mundo que você possa dar para estancá-lo.

8 (para iniciados). O insuportável é que nada é insuportável. O Google diz que o autor dessa frase é Rimbaud; eu jurava que era Florbela Espanca. Gostei de ambos na adolescência, hoje prefiro morder uma bela coxa de galinha, se é que me entendem (Clarice Lispector me entenderia, pasmem). Quanto à frase: pois é: o duro da vida é viver sob um céu onipresente e que pode desabar a qualquer instante. Não existe fuga possível. O desconhecido espreita e pode cair na nossa cabeça como uma bigorna. Mas calma: às vezes é apenas a bigorna da realidade, e ela, apesar das aparências e dos pesares, não faz mal algum.

1 comentário em “Sobre gratidão e hospitais”

  1. Pingback: O imaculado coração de Maria – Lorena Miranda Cutlak

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