Touro louríssimo, teu torso
forjado à força de antiquíssimas
batalhas sem ouro vencidas
vem dissolver-se nas pupilas
com que fulminas, sem esforço,
pedra selvagem e estrela fria.
Com sempre mansa maestria
de quem não mede a própria força,
pois que de si mesmo deposto
para melhor legar-se à lida,
teu passo é torto à revelia
da paz que emana de teu rosto.
Segues em frente, e em frente, e após
tua marcha zonza e imperativa
eis que desponto, a persegui-la,
sombra no rastro de um sol: touro,
tu que me arrastas pela vida,
que houve entre a noite e o nosso encontro?
As madrugadas mal cabiam
dentro do vão da minha fome,
eram chacinas repetidas,
todas idênticas, e o corvo
de uma Lenora mais antiga
vinha pontuá-las com o agouro
de seu “Não mais”, e eram sozinhas
as minhas lágrimas de assombro.
Eu não sabia que tu vinhas,
ponto de luz sobre o horizonte,
e às vezes dava por perdida
essa batalha contra a foice
de um desespero que trucida.
Touro de luz, forma de amor
a um tempo íntima e inaudita,
tu, a caminhar como caminhas,
com a retidão dos homens sós,
soubeste ver nas entrelinhas
do desencanto o meu melhor,
espécie de novo batismo
dentro das águas de teus olhos
místicos, límpidos: teus olhos
lançando, em busca de um destino,
sua chama em torno — são meus sóis.
Touro louríssimo, antiquíssimo,
esse céu triste, que revolves
em teu sonho sôfrego, habita
também as mágoas de meu corpo —
é o mesmo céu que, enfim, nos liga
pelo tendão da angústia, exposto.
In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.