Rapto

Do centro de um mar parado,
teu primeiro movimento
não recordo se foi valsa,
se rodopio ou aceno.
Como foi que tu chegaste,
precisamente, não lembro.
Se acaso furtei-te ao nada,
ou tu que, por acidente,
vieste fazer morada
segundo o sopro do vento,
ou talvez se necessário
desde o início dos tempos
era teres hospedagem
em meio a meus galhos secos.

 

Pensando bem, eu escutara
uma noite, no ar perdido
que apavora as madrugadas
— ou talvez foi no repique
dos sinos dominicais —
algo prenunciar tua vinda:
certa música sem escala
definida, mas bonita,
como um verso recitado
em língua desconhecida,
mas cuja cadência causa
comoção brusca no ritmo
interior de quem se cala
para mais nítido ouvi-lo.

 

Eu portanto te esperava
antes de saber que vinhas.
Meu corpo te antecipava
com suas fibras e feridas,
pronto para dilatar-se
conforme a tua medida.
Que tu vieste transformá-lo,
multiplicando sua vida,
somando-lhe mais que a falsa
razão de suas cicatrizes.
Tua fome limpa e descalça
percorre — um bom calafrio —
minha espinha acostumada
às voragens do vazio.

 

Mais cedo eu te abandonara
batendo à minha porta.
O convite que tu fazes
— morarmos ao teu redor —
lá no início vem de graça,
mas, se a desgraça é maior,
quem, faminto, a regalar-se
embrenha-se em nossos ossos
é um falso orgulho, se fausto.
Bem cedo aprendi de cor
a recitar ao contrário
teu credo que é todo amor
e acostumei-me a odiar-me
e a ti, que ias aonde eu fosse.

 

Permitirás que eu te embale
docemente, docemente,
assim, pousado em meus braços?
Não moras mais no meu ventre,
já tens a forma de um pássaro,
e és sempiterna a semente
do voo dorido, mas alto.
Desde que fixaste dentro
de mim, como um sobressalto,
a certeza de que vens
lá de onde as noites se acalmam,
sou de bom grado refém
do sonho que tu sonhaste
para que fôssemos plenos

nesse rapto: a dor do parto.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

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