Contemplo com emoção a vida amena,
a soma desses dias que vivemos
sem perceber que passam, que passamos.
E entanto do que finda há algo que emana
e se acumula a um canto, como pó,
ou antes como a pedra preciosa
gestada nas entranhas do rochedo
à custa da erosão de alguns milênios.
De tudo o que vivemos, dessas horas
de doce dormitar diante do espelho
sem ver que envelhecemos, sobrevive
claro no sobretempo o amor que jorra
desde a ancestral nascente que semeias
em meu corpo de terra, redivivo.
Se a mim me der a vida te ver velho,
tua loura cabeleira embranquecida
e ao fundo de olhos calmos, de partida,
a certeza de quem se sabe eterno,
se a ventura eu tiver de estar contigo
ao fim da estrada longa e pedregosa,
sabendo que tuas mãos breves recitam
em cada linha a vida que era nossa,
não temerei que o chão se abra e eu não sinta
mais a trepidação das horas duras;
que o tempo se desfaça em bolhas, plumas,
contanto que este alento se consinta:
sorver tua presença transformada
em pura essência, quando o mais for nada.