Escrever poemas sempre fez parte do meu mundo. Se for lícito chamar de livro a qualquer compilação dos textos de um autor, já poderia haver por aí uns dois ou três sob meu nome. Dois ou três livros ruins, na melhor das hipóteses completamente esquecíveis: sou muito feliz por não os ter publicado. O grande desafio foi dosar ousadia e pés no chão quando tive de considerar a publicação deste que, enfim, vai às ruas. Dou-o a público sem temer odiá-lo daqui a alguns anos, sabendo, justamente, que se trata disso: um primeiro livro, com toda a margem de imperfeições que lhe é de direito; um primeiro livro do qual preciso me livrar para seguir adiante e que creio ter feito crescer até seu máximo tamanho. O primeiro livro, afinal, de uma poetisa que já se conhece o suficiente para saber que, grande ou pequeno, deve ser este e não outro o seu primeiro passo.
Tive de aprender a conviver com o fato de que posso ser uma boa poetisa, mas não serei o “gênio da raça”. Qualquer que seja meu potencial, a vida que vivi até hoje, somada à que escolhi viver no futuro, inviabiliza a produção de uma obra maior do que meu próprio umbigo, por mais intuitivo que este seja. Meu nicho terá de ser o da lírica de impressões, e minha poesia colhida à margem da vida mais corriqueira, sem grandes aventuras, sem embriaguez; poesia composta como que dentro de um salão de espelhos, atenta às enormidades de uma existência sem rotas de fuga, cujos caminhos, se chegam a inspirar reflexões poetizáveis, nem sempre abrem uma brecha ociosa para o poeta estar a sós com seu ofício. Não sei se ainda terei a oportunidade de aprender muitas línguas e assimilar variadas literaturas; o mais provável é que siga aplicando a fórmula que me trouxe até o ponto onde hoje me encontro: lendo sem parar o punhado de autores que me satisfazem plenamente e tornando-me um amálgama do que aprendo com eles em técnica e tino artístico; atenta apenas às vozes que falam sob medida ao meu ouvido e incapaz de fazer leituras por obrigação. (Fiz um mestrado inteiro tentando corrigir esse vício. No fim das contas, o tiro saiu pela culatra.) Mas um poeta legitimamente grande precisa ir além disso, tendo, não raras vezes, de abdicar da vida mais chã para sobrevoar os espaços (Fernando Pessoa, Bruno Tolentino). Eu perdi o bonde da genialidade, no que me cabia cultivá-la. E no entanto há um alívio tremendo em contemplar com clareza a própria vocação.
Aprendi a não desdenhar de meu chamado à poesia. Percebi, entre erros e acertos, que o que posso fazer de melhor no campo intelectual reside nessa atividade curiosa que é recortar a vida com palavras coletivamente musicais. Recebi com surpresa os comentários lisonjeiros de quem me cria experimentada quando estava apenas começando. Aprendi a conter o impulso passional que desfigura o verso sob impressões desordenadas. Aprendi a respeitar cada palavra como um universo único e a desdenhar da noção de “sinônimos”. Cultivei, sobretudo, a paciência com o poema que tarda a estar maduro. Tudo isso em poucos anos, sob o impacto de leituras transformadoras e diálogos, eu diria, inaugurais. Levar a sério a poesia me abriu uma nova dimensão da realidade, onde buscar a forma mais justa de expressar determinada impressão acaba coincidindo com o aprofundamento desta impressão. Descobri que buscar o modo poético de dizer algo é uma forma peculiaríssima de pensar, um pensamento-ato revelador, encantatório.
Boa parte deste processo se deu durante meu enfrentamento das formas fixas. Isto que pode, à primeira vista, parecer mero conservadorismo estético bovinamente adotado, foi na verdade a pedra de toque de minha descoberta da poesia. Não se trata apenas de ser “bonito”, ou “harmônico”, ou mesmo “tradicional” (pois “é preciso resgatar nossas raízes devassadas” etc); do que realmente se trata, é difícil explicar, mas tentarei. Minha experiência me ensinou que as formas fixas têm vida própria. Ou não exatamente “as formas fixas”: toda a dimensão material (isto é, sonora) do poema existe sob regras próprias e como que em latência; tal qual uma corda que o poeta busca tocar, e quando a toca ela soa, e segue ressonando já segundo suas peculiares regras interiores. Um poema parece artificial quando o poeta não chega a tocar a corda, mas apenas imita seu som; já quando ele a alcança e consegue libertar sua forma, temos o que se chama inspiração: métrica, rimas, pensamento – som e sentido se desenvolvem num desenho único, e o poema vem à tona perfeito. A forma desdobra o pensamento e vice-versa. Isto é poesia. Isto é inspiração. Mas calma, não estou dizendo que não há poesia fora das formas fixas; quero dizer apenas que o verso livre exige do poeta um grau superior de maestria das formas, ao ponto de poder abrir mão delas e imitar sua música de ouvido. Jorge de Lima teve a educação espartana de seus alexandrinos. Manuel Bandeira, antes de “Libertinagem”, compôs “Carnaval” – livro que tanto amo! Começar a escrever poesia por versos livres é como tentar compor uma sinfonia sem ter jamais ouvido música.
Alguns poemas de O Corpo Nulo foram escritos sob o tipo de inspiração descrito acima, tanto que sofreram pouca ou nenhuma alteração desde os manuscritos. Mas são poucos entre a maioria de poemas sofregamente lapidados, nos quais o “o quê” só chegou a coincidir com o “como” após muito trabalho por assim dizer braçal. São duas experiências radicalmente diferentes – a inspiração e a lapidação –, e de cada uma delas pude retirar lições básicas sobre o fazer poético. Por um lado, este livro não existiria sem a tempestade que me fez regurgitá-lo no papel; mas tampouco haveria motivo para chamá-lo “livro” e convidar outros a lê-lo caso ele se tivesse cristalizado naquela inicial figura amorfa. O exercício da atenção, o esforço de aguçar o ouvido para torná-lo capaz de discernir o que objetivamente está sendo dito – não apenas o que ouvimos através da emoção autoral –, a paciência (sempre ela!) quando a figura idealizada se esquiva – aprender, enfim, a “regurgitar com estilo”! Lições de modelagem sem as quais um poeta pode apenas dar tiros no escuro.
O fato de O Corpo Nulo ter me proporcionado uma experiência composicional que me pareceu completa foi o que me fez vê-lo como um livro propriamente, em oposição às coletâneas que o precederam. Ele é, porém, o primeiro passo de uma trajetória que pretendo desenvolver ao longo de quantos anos ainda me restarem. Foi para mim o livro da tomada de consciência, da “bigorna da realidade” rachando o crânio do poeta lépido, “que só quer expressar seus sentimentos”. E a sensação é de que, transposto este importante umbral, um mundo inteiro se descortina.
Não desejando que esta reflexão, inicialmente desarmada, se torne em um manifesto, concluo-a idealizando um leitor amigável, que terá com meus poemas o mesmo cuidado que tive ao prepará-los. E que eles, os poemas, logrem retribuir satisfatoriamente a atenção recebida.
In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.
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