“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou…”
“O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.”
Alberto Caeiro, “O Guardador de Rebanhos”, poemas VI e XXX, respectivamente.
*
Estive relendo Alberto Caeiro, um dos poetas da minha adolescência; e dessa vez com mais interesse do que antes.
Em menina, uns quinze anos atrás, ele não era das minhas leituras mais intensas; nunca me demorei nos seus poemas, que por motivos então obscuros me pareciam “sem sal”. Meu favorito, no universo pessoano, sempre foi o ortônimo.
Hoje Caeiro me chama particularmente a atenção, e o leio com um misto de tédio e angústia, por reconhecer que ainda há muito do que ele diz sedimentado no que eu sou. E ao mesmo tempo percebo, com clareza renovada, que era mesmo inevitável que me tornasse cristã.
Querer a docilidade das plantas, mas não como uma entrega abnegada ao que tiver de ser e vir, antes como quem se fecha à possibilidade de sofrer: é isso, no fundo, o sensacionismo de Caeiro. O olhar de quem busca ver na flor somente a flor e no sol somente o sol, recusando obstinadamente reflexões e metáforas, é tão nítido quanto limitado. Reduzir a vida ao que nos chega de forma bruta pelos sentidos, ser apenas o que se é a cada momento, ir sendo, sem pensar, ir sendo…
Medo, um medo enorme de sofrer. Mas eu nunca entendi que se pudesse desejar a serenidade das pedras. Já na adolescência aquilo me parecia excessivamente morno e, em seu fundamento, irreal. Mesmo quando maravilhada pelo som e pelo ritmo tão envolventes daquelas palavras, era claro que estava diante de uma tentativa de fuga.
A filosofia de Caeiro é apenas um exemplo entre tantos de como os homens tentam driblar a dor por meio de racionalizações fajutas. E é inevitável que seja uma filosofia anti-cristã, pois a religião da cruz, antes de ser religião, antes de tornar-se credo, veio ao mundo justamente como a radicalização da dor: o Deus chagado, humilhado, crucificado, que levou ao extremo em sua própria carne todas as mágoas de que humanamente nos queixamos e nos deu testemunhar Sua Dor para nos ensinar a vivenciar a nossa.
Nunca será diferente: sempre vai doer. Em todos nós. De todos os modos possíveis. Essa é a realidade da experiência humana, e modificá-la não é uma questão de imitar a passividade das folhinhas trêmulas das árvores. Nem é o caso, na verdade, de “modificá-la”. Podemos alterar a fachada do edifício, mas os alicerces vão muito além de nossos pueris sensacionismos.
A única resposta razoável para o problema do mal é o Cristo, e está aí, à guisa de demonstração, a literatura de Dostoiévski. Os males que nos sucedem são fundamentalmente de dois tipos: os que nos acometem pessoalmente e os que acometem aqueles que amamos. Todas – repito: todas – as chagas da humanidade estão contempladas no sofrimento e morte de cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e na dor imensurável de sua Mãe Santíssima.
Sim, o papel de Maria na pedagogia da cruz é central. Quantas vezes nos sentimos feridos, não tanto em nossa integridade pessoal, mas em nosso senso de justiça, diante do mal feito a outrem? E quando esse outro é a pessoa que mais amamos no mundo – existe dor maior?
Jesus e Maria, juntos, nos dão a medida máxima da dor humana e nos mostram por que, e como, suportá-la. É uma lição dificílima, por mais didático que seja o exemplo. Mas está tudo aí – tudo aquilo de que Alberto Caeiro foge como se fosse o próprio diabo (e não é?); está tudo aí, para quem tiver olhos, não apenas os olhos da face, mas aqueles olhos metafóricos, produtos da maturação do espírito, que nos ajudam a tatear os caminhos misteriosos da Criação.
Deus quis, sim, que o conhecêssemos, e não apenas enquanto ente maravilhoso e inabarcável, mas de um modo que, para nós, haver Deus fizesse sentido… Ele Se nos mostrou tão perfeita e inegavelmente Deus – doendo, humanamente doendo – , que o único modo de não O ver desde então é fechar os olhos e “não pensar nisso”.
Essa reflexão meio críptica, meio literária, é meu modo de desejar um feliz Advento aos amigos, especialmente aos que se desejariam mortos por dentro como Alberto Caeiro, julgando haver nisso algum tipo de felicidade.
Que o Menino Jesus nasça no coração de cada um de nós e retifique nossos caminhos.
Parece que todos de alguma forma tentamos fugir de nossa dor, quando na verdade temos que abraçá-la. Texto lindo o seu, me fez fugir um pouco da minha busca incongruente e exagerada por respostas, basta olhar as vezes para a nossa dor, a resposta está lá.
Pingback: 9.12.2017 | Olavo de Carvalho
Mano, como é por aí? Desejo que seja como nos versos do salmo 91 (recito ao meu pai, avó e agora pra ti). Por aqui estamos sofridos, não poderia ser diferente. Não sei quando nos veremos novamente; mas sei que esse sofrimento vai amenizar com o tempo. Espero que me perdoes se eu não consegui aliviar a tua dor física como eu gostaria.
Quis tanto que dormisses confortavelmente. Queria tanto saber como foi aquele sono que antecedeu a tua partida definitiva. Antes da sedação pediste a mim para te ajudar, para fazer alguma coisa. Quero que saibas que eu não tive tempo de pensar ou tentar algo diferente. Eu apenas decidi rápido que o melhor seria adormeceres. Soube depois que aguardavas por mim para dizer que não querias mais sedação forte, pois não conseguirias mais conversar. Não sei se acertei de verdade. Mas a intenção foi de te tirar daquela realidade. Dúvida eterna. As religiões e a ciência não me convencem de nada. Toda dúvida é assim, inquietante. Somente Deus e no tempo Dele! Mas, se podes me ouvir saiba que te quis o meu irmão (pessoa brincalhona, amorosa e bondosa). Com aquela doença não daria para continuar. Em resumo, se não deu pra curar e conservar a tua vida então devo me convencer (como é difícil) que para vence-la precisamos te perder. Não me desesperarei. Eu só quero que me perdoes pelo adormecimento. A saudade significa que não passaste em vão nessa vida, pelo contrário: semeaste muito amor de forma simples, humilde (como Jesus de Nazaré). Sabiamente reuniste nos quatro e nossa mãe naqueles dias de hospital para registrar esse amor de forma inexorável perante teus filhos e esposa. Obrigada, mano.