Sobre o mau otimismo

Texto originalmente publicado no Facebook, em março de 2017.

 

Ontem uma amiga me escreveu pedindo conselhos sobre como ajudar um casal cujo bebê possivelmente nascerá com síndrome de Down.

Eu poderia falar sobre isso por horas e horas. Aquela época – a época da gestação, da incerteza, dos exames intermináveis que só multiplicavam as dúvidas e as angústias – foi como um filme macabro que até hoje, frequentemente, me volta à cabeça. Digo com convicção que nenhum momento após o nascimento da Maria foi tão difícil quanto aquela época.

O que dizer a quem está passando por isso hoje? Como a minha amiga, estando de fora, pode lidar com o sofrimento desse casal?

Sofrimento, sim, para início de conversa. É um diagnóstico difícil, e talvez mais ainda quando incerto, quando tudo o que se tem é uma possibilidade pairando sobre a vida da família como uma nuvem negra. Depois que se tem certeza, se chega ao fundo do poço para dali se ir “do luto à luta” – e a luz no fim do túnel não tarda a aparecer. Mas lidar com a mera possibilidade corrói as nossas entranhas: você não pode se apegar nem ao filho “perfeito”, que você tanto deseja ter, nem ao filho com Down, que afinal talvez nem exista.

Vivi nesse limbo por seis meses. Não “curti” a gestação, não consegui pensar em enxoval e quartinho do bebê, mas também não saí pesquisando loucamente sobre a síndrome, como muitos pais fazem. Simplesmente não conseguia me envolver; todas as minhas forças se destinavam a estar minimamente saudável para chegar ao fim da gestação.

Não pesquisar sobre o assunto, aliás, foi o melhor que eu podia ter feito – hoje sei disso. Na internet lemos principalmente sobre as situações extremas e grandes dificuldades, sobre estereótipos e generalizações, quando a verdade é que ninguém jamais será capaz de descrever o dia a dia, a convivência corriqueira com a criança – que é, precisamente, a tal luz no fim do túnel. Com o tempo e o fortalecimento do vínculo, a síndrome de Down é ofuscada pela vida comum, pelas fraldas por trocar, pelos banhos para dar, pelos sorrisos, pelas conquistas, pela primeira febre, pelo primeiro dente, pelas dificuldades que já não são a vaga e misteriosa síndrome de Down, mas a vida do seu filho. Nenhum artigo científico ou relato em blog de outra pessoa pode dizer como será a realidade particular de cada família e cada criança.

Agora, voltando à pergunta da minha amiga… Quando relembro a época tão conturbada da minha gestação, não posso deixar de notar que grande parte do sofrimento vinha da negação expressa por quase todos ao meu redor.

“Não vai ser não vai ser não vai ser”

Se todos negavam tão enfaticamente aquela possibilidade, então devia ser mesmo algo monstruoso que, se confirmado, significaria a rejeição da minha filha. Os poucos comentários que não se apressavam a afirmar que “não seria” eram, no fim das contas, os que mais me ajudavam, pois não me faziam sentir diante de um abismo terrível. “Se for, vai ser amada do mesmo jeito” – e eu, que não queria “que fosse”, ainda assim guardava no coração as frases desse teor, como um alento contra o pânico implícito no “não vai ser”.

Assim, disse o seguinte à minha amiga: não seja a pessoa com cara de enterro; não diga para a mãe “ter pensamento positivo, que não vai ser”; se você passar meses tratando a síndrome de Down como uma possibilidade horrenda e desastrosa, sua tentativa de sorrir após o nascimento da criança parecerá falsa e entristecerá ainda mais os pais.

Diga a esses pais que por enquanto tudo é nebuloso, mas que quando eles tiverem a criança nos braços eles vão se entender e se encontrar no meio de tantas dúvidas. “Se for, não será o fim do mundo; com ou sem Down, ainda é o seu filho que está aí dentro e todos vamos amá-lo muito, aconteça o que acontecer.”

Nesses momentos iniciais, um dos nossos maiores medos é justamente quanto à aceitação da criança pela família, pelos amigos, pelo mundo. O “não vai ser” é o pior modo de começar essa relação. A criança já é, no ventre de uma mãe que já a ama. Ofertar-lhe amor incondicional é o que de melhor podemos fazer por ela e por essa família que enfrenta seu momento mais delicado.

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