Lorena Miranda Cutlak

Noturno na Noite de Natal

Persigo a cada conta do rosário
o peso e a paz do sono.
Não basta transbordarem os olhos rasos
da dor que não se conta,
nem faz lá diferença estar cansado
há dias nesse encontro
da fé com o desespero e o desamparo;
a luz, se não desponta
em certos indefesos descampados
marcados pela sombra
venial, capaz de encher todos os mares,
não regará os escombros
de dons desperdiçados, faltas graves.

Recorro às asas mudas do rosário
como à luz de uma vela
quando eis a escuridão de lado a lado;
são mudas pois severas
em sua fixidez de candelabro,
mas mesmo sendo pedras
são leves e intangíveis como as asas
do colibri mais breve,
desfazem-se entre os dedos que as abrasam
rogando por que empreguem
seu basto poderio, as rubras achas
que queimam o que libertam
e tornam em luz maior a cinza escassa.

Tremendo e suplicando, encontro a chave
ao sono que se aninha
entre os braços da Cruz que a Mãe chorava.
As horas de agonia
que ela regou com lágrimas suaves
vêm dar consolo à minha
desolação na noite que se acaba
entre o horror da visita
de um medo sem objeto e um amor que indaga
qual dor há nessa vida
não seja mera sombra dessa chaga
muito mais dolorida
quanto mais de outro mundo e solitária.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Permanência

Contemplo com emoção a vida amena,
a soma desses dias que vivemos
sem perceber que passam, que passamos.
E entanto do que finda há algo que emana

e se acumula a um canto, como pó,
ou antes como a pedra preciosa
gestada nas entranhas do rochedo
à custa da erosão de alguns milênios.

De tudo o que vivemos, dessas horas
de doce dormitar diante do espelho
sem ver que envelhecemos, sobrevive

claro no sobretempo o amor que jorra
desde a ancestral nascente que semeias
em meu corpo de terra, redivivo.

 

 

Se a mim me der a vida te ver velho,
tua loura cabeleira embranquecida
e ao fundo de olhos calmos, de partida,
a certeza de quem se sabe eterno,

se a ventura eu tiver de estar contigo
ao fim da estrada longa e pedregosa,
sabendo que tuas mãos breves recitam
em cada linha a vida que era nossa,

não temerei que o chão se abra e eu não sinta
mais a trepidação das horas duras;
que o tempo se desfaça em bolhas, plumas,

contanto que este alento se consinta:
sorver tua presença transformada
em pura essência, quando o mais for nada.

Cantiga do menino branco

Os teus olhinhos pensativos,
menino branco (eras translúcido
quando em meu sonho entraste) e tímido,
passeiam sobre os móveis rústicos

que nosso lar doce mobíliam.
Não vêem, porém, palmo adiante,
como num transe, e se se aninham
no pó de sombra sobre a estante

onde dormitam nossos livros,
logo alçam vôo – vão tão distantes
os teus olhinhos pensativos,
ó meu menino muito branco,

que só repousam (sem destino
definitivo que os estanque)
lá onde o tempo ainda engatinha
e dorme o sono das crianças.

O Touro Contra a Morte

Touro louríssimo, teu torso
forjado à força de antiquíssimas
batalhas sem ouro vencidas
vem dissolver-se nas pupilas
com que fulminas, sem esforço,
pedra selvagem e estrela fria.

Com sempre mansa maestria
de quem não mede a própria força,
pois que de si mesmo deposto
para melhor legar-se à lida,
teu passo é torto à revelia
da paz que emana de teu rosto.

Segues em frente, e em frente, e após
tua marcha zonza e imperativa
eis que desponto, a persegui-la,
sombra no rastro de um sol: touro,
tu que me arrastas pela vida,
que houve entre a noite e o nosso encontro?

As madrugadas mal cabiam
dentro do vão da minha fome,
eram chacinas repetidas,
todas idênticas, e o corvo
de uma Lenora mais antiga
vinha pontuá-las com o agouro

de seu “Não mais”, e eram sozinhas
as minhas lágrimas de assombro.
Eu não sabia que tu vinhas,
ponto de luz sobre o horizonte,
e às vezes dava por perdida
essa batalha contra a foice

de um desespero que trucida.
Touro de luz, forma de amor
a um tempo íntima e inaudita,
tu, a caminhar como caminhas,
com a retidão dos homens sós,
soubeste ver nas entrelinhas

do desencanto o meu melhor,
espécie de novo batismo
dentro das águas de teus olhos
místicos, límpidos: teus olhos
lançando, em busca de um destino,
sua chama em torno — são meus sóis.

Touro louríssimo, antiquíssimo,
esse céu triste, que revolves
em teu sonho sôfrego, habita
também as mágoas de meu corpo —
é o mesmo céu que, enfim, nos liga
pelo tendão da angústia, exposto.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Domingo

“Não é fogo legítimo essa chama,
como é falso e forjado aquele mármore;
o que brilha no altar é luz de lâmpada;

não se sabem os frutos pela árvore?”
É o que penso, diante da coluna
de cimento, pintada como mármore,

sustentando, entre outras, a fortuna
espiritual nos vácuos dessa igreja.
Ver as coisas de Deus em forma humana,

tantas fachadas, ritos — não que seja
má em si a presença do sensível
germinando entre o bem que a alma enseja,

e também, de que modo, que intangível
entidade oferece-se a que entenda-a
a humana razão, sem a carne viva

de algo como esta igreja? Esta tenda,
circundada de espinhos e deserto,
fosse ela só espírito, a contenda

por que veio sofrer seria um incerto
jogo de luz e sombra, nulo aos homens.
Vejo aqui deste banco bem de perto

como é frágil a estrutura, como somem
ofuscados por cores e tamanhos
os dois olhos de Deus, sem cor, que luzem.

Ou talvez são os meus que, em meio ao sonho
impregnante do mundo como ideia,
não conseguem senão ver quanto é estranho

ter a carne do eterno entregue em ceia
à manada inclemente, que tem fome
de sofrer e que sofre nessa teia

asquerosa, sem mal saber-Lhe o nome.
É hora da comunhão, que longa fila,
pedem as almas sofridas que Ele as dome.

Eu não vou até lá. Não estou tranquila,
ou serena que possa receber
em meu corpo este Corpo. Se vacila

minha fé, é que os olhos sabem ver
melhor que o coração sabe entregar
suas correntes à redenção no Ser.

E, no entanto, percebo quanto há
de amor puro, de pura expectação
nessas faces cansadas que Ele dá

à luz, não porque saibam de antemão
compreender o mistério que as consome,
mas por somente ansiarem a exaustão

no calor dessa luz, que aos olhos some.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Prefácio: Contemporaneidade d’O Corpo Nulo’

Por Wladimir Saldanha

 

Escrevendo sobre Tasso da Silveira em 1940, um jovem Adonias Filho afirmava sem pejos: sublimando o que no corpo é repelente e trágico, o homem se aproxima do estado de morte, de um momento de arte”[1]. Gostaria de começar com essa evocação, ou provocação, tanto pelo que nos diz de seu à-vontade com os temas de uma “poesia eterna” quanto pelo que supõe de impasses entre lira e antilira, de insuspeitas ressonâncias quando hoje Lorena Miranda Cutlak nos chega com O corpo nulo.

Veja o leitor que a primeira seção deste livro, Corte & Costura, é na verdade uma cabralina “escola de facas”, apesar do nome caroável. Porém, se em Cabral os sensorialismos da “navalha do vento” ou do “gume da cana” balizam os extremos em que se movimenta sua grande poesia, na recém-chegada as agulhas e os alfinetes de Corte & Costura são os pontos de partida que o sujeito lírico estabelece para uma iniciada amplitude, para “deixar que o corpo perca suas vantagens”, como se lê ao final da segunda seção, Acid Trippin’, no poema Corolário. Em verdade já líamos antes, numa peça homônima ao livro: “Motivos fui cedo perdendo/ para chacoalhar essa flâmula/ mortalíssima do sensível”. E por tudo se vê que a anulação desse corpo fora atingida, embora em direção oposta à de certa aranha tecelã.

Há também às vezes uma delicadeza, um semitom ceciliano. O octossílabo, metro da predileção de L. M. C., bebe de várias fontes – de Cabral e Cecília, de Cunha Melo. Se alguns parecem vir de “oficina irritada”, pelos ditongos recorrentes em possessivos, é delicadíssimo o encadeamento de alexandrinos do poema Penumbra, ou dos decassílabos de Primavera, aqueles e estes combinados com versos finais de seis sílabas a cada estrofe, e todos soando fluentes como versos livres. Não há cavilhas, não há enxertos para atingir os tamanhos desejados nem elisões forçadas; os acentos, nos quebrados finais, vão da segunda à quarta como numa conversa.

Confesso que, numa primeira leitura, deslembrado desse tipo entrechat de bela tradição (p. ex. Gonçalves Dias, em Desengano, citado por Said Ali), pensei em verso livre. É que uma pequena aula de expressão poética vai latente aí: já não a do versilibrismo que aprendeu com a métrica, mas a dos metros que voltam do verso livre[2], ou mesmo da prosa – pois a autora é também uma estudiosa de Dostoiévski. É possível rastrear no seu livro aquela “aliança com a prosa” que Alfonso Berardinelli aponta em parte da lírica moderna, aproveitando uma lição de Baudelaire[3]. Haverá quem não veja – mas há muitos cegos nesta contemporaneidade d’O corpo nulo, alguns por opção; por certo L. M. C. não o ignora, e com isso tempera seu próprio olhar.

Digamos, contudo, que sua lição é a do ritmo, a acompanhá-la nos paroxismos, quando o corpo nulo vai “mais além de suas cicatrizes”; depois, entre objeto e persona lírica, quando ele estranha a si mesmo, experienciando o Pânico – essa nova histeria do Século XXI − e ainda quando dorme, sussurra, entrega-se amoroso ao seu “touro louríssimo”, é sempre um sentido rítmico que guia o verso, a “dor pulsátil” de L. M. C., usando agora uma de suas belas invenções.

Ocorre de voltar ao palo seco e com ele nos dar poemas de amor, como noutro sobre o mesmo touro (valendo um sonoro olé! nas “poesias de gênero”): “Firmou compromisso com a pedra/ parasita dentro em seu peito/ e quando o trabalho o recruta/ quebra pedras sem sentimento”. Na seção final, a tauromaquia vai redundar no poema Rapto, um dos poucos entre nós a tematizar a gravidez e o parto, talvez único no país ufano da moça grávida de biquíni na areia da praia, há já dez lustros.

Só pela força desse Rapto e a pertinência daquele Pânico teríamos aqui uma voz obrigatória do chamado nosso tempo. Mas não é só. O mundo dos fármacos, nunca tão nosso, é também o seu, em morfinas, lenitivos, “dimenidrinatos” e “benzodiazepínicos”. Diremos agora, olhando o conjunto, que esta poesia se equilibra num fio tênue entre lira e antilira, entre melodia e ruído, e que ora frequenta a convenção literária em versos do Belo que ainda se quer discursivo, até explicativo (“O corpo criado é perfeito,/forma humana providencial”), ora se retrai, volta ao Feio (“como um qualquer verme”). Daí suas possíveis “flores mixas/ que ao desabrocharem se fecham”.

Ao contrário de uma sublimação que seja mero apagamento, O corpo nulo é a “ponte entre o sensível e a eternidade” (poema A ponte), conhecendo a “anatomia do seio lacerado”, os “pesares do jardim” (Consagração). Se há um estado de morte, é para contemplá-lo na posição analítica (bem cabralina, antilírica) e rememorativa (lírica por definição, conforme o bom e velho Steiger).

Ainda no estudo sobre Tasso da Silveira, Adonias Filho elogia certa poesia “em prece”, ficando a impressão, entretanto, dos exemplos que cita, que a prece sacrificava a poesia. Por essas velhas e outras novas, é belo vermos a poetisa de O corpo nulo rezar em verso (p. ex., poema Noturno na Noite de Natal), sem fulminar a abertura do signo poético; se frequenta a “poesia eterna”, é com o “olhar aguçado à tormenta” com que volta da vida (vejam em O outro absoluto, V).

Ao sublimar o que no corpo há de “repelente e trágico”, ao fazer o seu ceciliano “grito transfigurado”, L. M. C. nos chega mais cabralina, mais antilírica – e como isso resulta bem! Dói-lhe o cravo do Fédon, aquele que prende a alma ao corpo, quando se prostra aos pés de Nossa Senhora – novo trovador que a chama simplesmente de Senhora, ou Senhora minha − e lamenta não poder “erguer-se além de si” (poema Consagração).

A nulidade deste corpo será, no fim das contas, a busca de uma ascese. Em tempos de performance, quando os seguidores brasileiros de Paul Zumthor pretendem seja a literatura um mero “preconceito grafocêntrico”, O corpo nulo dança no ar, fazendo poesia amorosa, poesia do conhecimento da dor e lira metafísica de inspiração cristã com as lições da antilira. Aos que ainda acreditamos na “poesia eterna”, resta a urgência desta contemporaneidade: a certeza de que as flores mixas faltavam.

 

[1] “Tasso da Silveira e o tema da poesia eterna.” São Paulo: S. E. Panorama Ltda., 1940, p. 9

[2] Isso, não obstante o que diz L. M. C. no seu Posfácio: cremos que já faz o caminho oposto.

[3] “Da Poesia à Prosa.” Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Posfácio da autora

Escrever poemas sempre fez parte do meu mundo. Se for lícito chamar de livro a qualquer compilação dos textos de um autor, já poderia haver por aí uns dois ou três sob meu nome. Dois ou três livros ruins, na melhor das hipóteses completamente esquecíveis: sou muito feliz por não os ter publicado. O grande desafio foi dosar ousadia e pés no chão quando tive de considerar a publicação deste que, enfim, vai às ruas. Dou-o a público sem temer odiá-lo daqui a alguns anos, sabendo, justamente, que se trata disso: um primeiro livro, com toda a margem de imperfeições que lhe é de direito; um primeiro livro do qual preciso me livrar para seguir adiante e que creio ter feito crescer até seu máximo tamanho. O primeiro livro, afinal, de uma poetisa que já se conhece o suficiente para saber que, grande ou pequeno, deve ser este e não outro o seu primeiro passo.

 

Tive de aprender a conviver com o fato de que posso ser uma boa poetisa, mas não serei o “gênio da raça”. Qualquer que seja meu potencial, a vida que vivi até hoje, somada à que escolhi viver no futuro, inviabiliza a produção de uma obra maior do que meu próprio umbigo, por mais intuitivo que este seja. Meu nicho terá de ser o da lírica de impressões, e minha poesia colhida à margem da vida mais corriqueira, sem grandes aventuras, sem embriaguez; poesia composta como que dentro de um salão de espelhos, atenta às enormidades de uma existência sem rotas de fuga, cujos caminhos, se chegam a inspirar reflexões poetizáveis, nem sempre abrem uma brecha ociosa para o poeta estar a sós com seu ofício. Não sei se ainda terei a oportunidade de aprender muitas línguas e assimilar variadas literaturas; o mais provável é que siga aplicando a fórmula que me trouxe até o ponto onde hoje me encontro: lendo sem parar o punhado de autores que me satisfazem plenamente e tornando-me um amálgama do que aprendo com eles em técnica e tino artístico; atenta apenas às vozes que falam sob medida ao meu ouvido e incapaz de fazer leituras por obrigação. (Fiz um mestrado inteiro tentando corrigir esse vício. No fim das contas, o tiro saiu pela culatra.) Mas um poeta legitimamente grande precisa ir além disso, tendo, não raras vezes, de abdicar da vida mais chã para sobrevoar os espaços (Fernando Pessoa, Bruno Tolentino). Eu perdi o bonde da genialidade, no que me cabia cultivá-la. E no entanto há um alívio tremendo em contemplar com clareza a própria vocação.

 

Aprendi a não desdenhar de meu chamado à poesia. Percebi, entre erros e acertos, que o que posso fazer de melhor no campo intelectual reside nessa atividade curiosa que é recortar a vida com palavras coletivamente musicais. Recebi com surpresa os comentários lisonjeiros de quem me cria experimentada quando estava apenas começando. Aprendi a conter o impulso passional que desfigura o verso sob impressões desordenadas. Aprendi a respeitar cada palavra como um universo único e a desdenhar da noção de “sinônimos”. Cultivei, sobretudo, a paciência com o poema que tarda a estar maduro. Tudo isso em poucos anos, sob o impacto de leituras transformadoras e diálogos, eu diria, inaugurais. Levar a sério a poesia me abriu uma nova dimensão da realidade, onde buscar a forma mais justa de expressar determinada impressão acaba coincidindo com o aprofundamento desta impressão. Descobri que buscar o modo poético de dizer algo é uma forma peculiaríssima de pensar, um pensamento-ato revelador, encantatório.

 

Boa parte deste processo se deu durante meu enfrentamento das formas fixas. Isto que pode, à primeira vista, parecer mero conservadorismo estético bovinamente adotado, foi na verdade a pedra de toque de minha descoberta da poesia. Não se trata apenas de ser “bonito”, ou “harmônico”, ou mesmo “tradicional” (pois “é preciso resgatar nossas raízes devassadas” etc); do que realmente se trata, é difícil explicar, mas tentarei. Minha experiência me ensinou que as formas fixas têm vida própria. Ou não exatamente “as formas fixas”: toda a dimensão material (isto é, sonora) do poema existe sob regras próprias e como que em latência; tal qual uma corda que o poeta busca tocar, e quando a toca ela soa, e segue ressonando já segundo suas peculiares regras interiores. Um poema parece artificial quando o poeta não chega a tocar a corda, mas apenas imita seu som; já quando ele a alcança e consegue libertar sua forma, temos o que se chama inspiração: métrica, rimas, pensamento – som e sentido se desenvolvem num desenho único, e o poema vem à tona perfeito. A forma desdobra o pensamento e vice-versa. Isto é poesia. Isto é inspiração. Mas calma, não estou dizendo que não há poesia fora das formas fixas; quero dizer apenas que o verso livre exige do poeta um grau superior de maestria das formas, ao ponto de poder abrir mão delas e imitar sua música de ouvido. Jorge de Lima teve a educação espartana de seus alexandrinos. Manuel Bandeira, antes de “Libertinagem”, compôs “Carnaval” – livro que tanto amo! Começar a escrever poesia por versos livres é como tentar compor uma sinfonia sem ter jamais ouvido música.

 

Alguns poemas de O Corpo Nulo foram escritos sob o tipo de inspiração descrito acima, tanto que sofreram pouca ou nenhuma alteração desde os manuscritos. Mas são poucos entre a maioria de poemas sofregamente lapidados, nos quais o “o quê” só chegou a coincidir com o “como” após muito trabalho por assim dizer braçal. São duas experiências radicalmente diferentes – a inspiração e a lapidação –, e de cada uma delas pude retirar lições básicas sobre o fazer poético. Por um lado, este livro não existiria sem a tempestade que me fez regurgitá-lo no papel; mas tampouco haveria motivo para chamá-lo “livro” e convidar outros a lê-lo caso ele se tivesse cristalizado naquela inicial figura amorfa. O exercício da atenção, o esforço de aguçar o ouvido para torná-lo capaz de discernir o que objetivamente está sendo dito – não apenas o que ouvimos através da emoção autoral –, a paciência (sempre ela!) quando a figura idealizada se esquiva – aprender, enfim, a “regurgitar com estilo”! Lições de modelagem sem as quais um poeta pode apenas dar tiros no escuro.

 

O fato de O Corpo Nulo ter me proporcionado uma experiência composicional que me pareceu completa foi o que me fez vê-lo como um livro propriamente, em oposição às coletâneas que o precederam. Ele é, porém, o primeiro passo de uma trajetória que pretendo desenvolver ao longo de quantos anos ainda me restarem. Foi para mim o livro da tomada de consciência, da “bigorna da realidade” rachando o crânio do poeta lépido, “que só quer expressar seus sentimentos”. E a sensação é de que, transposto este importante umbral, um mundo inteiro se descortina.

 

Não desejando que esta reflexão, inicialmente desarmada, se torne em um manifesto, concluo-a idealizando um leitor amigável, que terá com meus poemas o mesmo cuidado que tive ao prepará-los. E que eles, os poemas, logrem retribuir satisfatoriamente a atenção recebida.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Rapto

Do centro de um mar parado,
teu primeiro movimento
não recordo se foi valsa,
se rodopio ou aceno.
Como foi que tu chegaste,
precisamente, não lembro.
Se acaso furtei-te ao nada,
ou tu que, por acidente,
vieste fazer morada
segundo o sopro do vento,
ou talvez se necessário
desde o início dos tempos
era teres hospedagem
em meio a meus galhos secos.

 

Pensando bem, eu escutara
uma noite, no ar perdido
que apavora as madrugadas
— ou talvez foi no repique
dos sinos dominicais —
algo prenunciar tua vinda:
certa música sem escala
definida, mas bonita,
como um verso recitado
em língua desconhecida,
mas cuja cadência causa
comoção brusca no ritmo
interior de quem se cala
para mais nítido ouvi-lo.

 

Eu portanto te esperava
antes de saber que vinhas.
Meu corpo te antecipava
com suas fibras e feridas,
pronto para dilatar-se
conforme a tua medida.
Que tu vieste transformá-lo,
multiplicando sua vida,
somando-lhe mais que a falsa
razão de suas cicatrizes.
Tua fome limpa e descalça
percorre — um bom calafrio —
minha espinha acostumada
às voragens do vazio.

 

Mais cedo eu te abandonara
batendo à minha porta.
O convite que tu fazes
— morarmos ao teu redor —
lá no início vem de graça,
mas, se a desgraça é maior,
quem, faminto, a regalar-se
embrenha-se em nossos ossos
é um falso orgulho, se fausto.
Bem cedo aprendi de cor
a recitar ao contrário
teu credo que é todo amor
e acostumei-me a odiar-me
e a ti, que ias aonde eu fosse.

 

Permitirás que eu te embale
docemente, docemente,
assim, pousado em meus braços?
Não moras mais no meu ventre,
já tens a forma de um pássaro,
e és sempiterna a semente
do voo dorido, mas alto.
Desde que fixaste dentro
de mim, como um sobressalto,
a certeza de que vens
lá de onde as noites se acalmam,
sou de bom grado refém
do sonho que tu sonhaste
para que fôssemos plenos

nesse rapto: a dor do parto.

 

In: L.M.C. O Corpo Nulo. Mondrongo, 2015.

Sobre o mau otimismo

Texto originalmente publicado no Facebook, em março de 2017.

 

Ontem uma amiga me escreveu pedindo conselhos sobre como ajudar um casal cujo bebê possivelmente nascerá com síndrome de Down.

Eu poderia falar sobre isso por horas e horas. Aquela época – a época da gestação, da incerteza, dos exames intermináveis que só multiplicavam as dúvidas e as angústias – foi como um filme macabro que até hoje, frequentemente, me volta à cabeça. Digo com convicção que nenhum momento após o nascimento da Maria foi tão difícil quanto aquela época.

O que dizer a quem está passando por isso hoje? Como a minha amiga, estando de fora, pode lidar com o sofrimento desse casal?

Sofrimento, sim, para início de conversa. É um diagnóstico difícil, e talvez mais ainda quando incerto, quando tudo o que se tem é uma possibilidade pairando sobre a vida da família como uma nuvem negra. Depois que se tem certeza, se chega ao fundo do poço para dali se ir “do luto à luta” – e a luz no fim do túnel não tarda a aparecer. Mas lidar com a mera possibilidade corrói as nossas entranhas: você não pode se apegar nem ao filho “perfeito”, que você tanto deseja ter, nem ao filho com Down, que afinal talvez nem exista.

Vivi nesse limbo por seis meses. Não “curti” a gestação, não consegui pensar em enxoval e quartinho do bebê, mas também não saí pesquisando loucamente sobre a síndrome, como muitos pais fazem. Simplesmente não conseguia me envolver; todas as minhas forças se destinavam a estar minimamente saudável para chegar ao fim da gestação.

Não pesquisar sobre o assunto, aliás, foi o melhor que eu podia ter feito – hoje sei disso. Na internet lemos principalmente sobre as situações extremas e grandes dificuldades, sobre estereótipos e generalizações, quando a verdade é que ninguém jamais será capaz de descrever o dia a dia, a convivência corriqueira com a criança – que é, precisamente, a tal luz no fim do túnel. Com o tempo e o fortalecimento do vínculo, a síndrome de Down é ofuscada pela vida comum, pelas fraldas por trocar, pelos banhos para dar, pelos sorrisos, pelas conquistas, pela primeira febre, pelo primeiro dente, pelas dificuldades que já não são a vaga e misteriosa síndrome de Down, mas a vida do seu filho. Nenhum artigo científico ou relato em blog de outra pessoa pode dizer como será a realidade particular de cada família e cada criança.

Agora, voltando à pergunta da minha amiga… Quando relembro a época tão conturbada da minha gestação, não posso deixar de notar que grande parte do sofrimento vinha da negação expressa por quase todos ao meu redor.

“Não vai ser não vai ser não vai ser”

Se todos negavam tão enfaticamente aquela possibilidade, então devia ser mesmo algo monstruoso que, se confirmado, significaria a rejeição da minha filha. Os poucos comentários que não se apressavam a afirmar que “não seria” eram, no fim das contas, os que mais me ajudavam, pois não me faziam sentir diante de um abismo terrível. “Se for, vai ser amada do mesmo jeito” – e eu, que não queria “que fosse”, ainda assim guardava no coração as frases desse teor, como um alento contra o pânico implícito no “não vai ser”.

Assim, disse o seguinte à minha amiga: não seja a pessoa com cara de enterro; não diga para a mãe “ter pensamento positivo, que não vai ser”; se você passar meses tratando a síndrome de Down como uma possibilidade horrenda e desastrosa, sua tentativa de sorrir após o nascimento da criança parecerá falsa e entristecerá ainda mais os pais.

Diga a esses pais que por enquanto tudo é nebuloso, mas que quando eles tiverem a criança nos braços eles vão se entender e se encontrar no meio de tantas dúvidas. “Se for, não será o fim do mundo; com ou sem Down, ainda é o seu filho que está aí dentro e todos vamos amá-lo muito, aconteça o que acontecer.”

Nesses momentos iniciais, um dos nossos maiores medos é justamente quanto à aceitação da criança pela família, pelos amigos, pelo mundo. O “não vai ser” é o pior modo de começar essa relação. A criança já é, no ventre de uma mãe que já a ama. Ofertar-lhe amor incondicional é o que de melhor podemos fazer por ela e por essa família que enfrenta seu momento mais delicado.

Uma cruz sem cruz

Texto originalmente publicado no Facebook, em outubro de 2014.

 

Definitivamente, a maior lição da gravidez é o incrível poder de adaptação de nosso corpo e nossa mente. Se de um dia para o outro eu acordasse como estou hoje – com uma barriga gigante, dores nas articulações, o diafragma comprimido até a falta de ar e uma criatura viva se contorcendo nas minhas entranhas – provavelmente enlouqueceria. Mas, não por acaso, levei oito meses para ficar assim. E o fato é que agora todos esses incômodos incomodam muito pouco, pois vieram sendo assimilados lentamente, a cada novo dia de gestação. Andar dói e deitar é impossível, sim – mas isso significa apenas que a normalidade da gravidez é diferente do que costumamos ter por normalidade. E isso não é apenas suportável – é natural e bom. Como diz S. Josemaría Escrivá, é uma cruz sem cruz.

É muito difícil perceber essas coisas todas e não sentir uma vontade incontrolável de implorar a todas as mulheres que não se privem dessa experiência. Existe um mundo de tesouros escondido no potencial feminino para gerar filhos, que não faz falta enquanto você não sabe que ele existe, mas que depois de descoberto agiganta a pessoa que você é.

O último mês de gestação é a prova de que o ser humano pode viver em perfeita harmonia com o incômodo e a dor, sem precisar de subterfúgios ou qualquer anestésico além de sua própria capacidade de adaptação. Não é nenhum bicho de sete cabeças. Literalmente: é a vida.